Galo de luta

Vontade de virar rapper levou Paulo Lima aos livros. Hoje é líder dos Entregadores Antifascistas

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo

Enquanto cruza a cidade com a mochila nas costas, pesada de comida, para fazer a entrega a quem fez o pedido pelo aplicativo minutos antes, o entregador acelera por entre carros com o estômago vazio.

Em São Paulo, onde Deus é uma nota de 100, como diria o poeta, quem consegue rodar 12 horas por dia fazendo entrega ganha, em média, R$ 936 por mês, de acordo com a pesquisa da Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas), lançada em 2019. Parte dessa grana, porém, é reservada justamente para comprar a própria comida, visto que os aplicativos não costumam oferecer auxílio alimentação para sua força de trabalho nas ruas.

Foi com isso em mente que Paulo Lima se juntou a mais 10 colegas entregadores na manifestação antirracista e antifascista que aconteceu no último domingo (7) no Largo da Batata, zona oeste da capital paulista. Quando o ato parou próximo à estação Fradique Coutinho do metrô, ele acompanhou. Olhou ao redor. Sentiu o clima. Percebeu que aquele seria o momento certo para agir.

"Eu tenho que aproveitar que tem um monte de câmera aqui para mandar um papo forte para conquistar os entregadores que estão pelo Brasil", pensou. Se posicionou à frente dos colegas de trabalho e pediu a palavra.

De forma direta e simples, com uma oratória digna de veteranos, resumiu a sua luta contra a precariedade do trabalho. Coube tudo em um vídeo curto, postado no Twitter que viralizou e bateu mais de 500 mil visualizações. "Pô, essas paradas de like, visualização? Tudo isso parece pouco, mas eu estava sozinho nessa luta antes, sabe? Agora a luta ganhou uma projeção", disse para a reportagem de Ecoa.

Ele tem a consciência de quem entrou para o mundo do hip hop e descobriu exatamente como a banda toca quando se é preto, pobre e favelado. O conhecimento das letras virou ação quando resolveu montar o grupo "Entregadores Antifascistas".

No vídeo, ele aparece com uma mochila térmica vermelha nas costas ao lado dos colegas entregadores de punhos cerrados e erguidos e um cartaz com os dizeres "vidas pretas importam". A tropa de choque da polícia militar completa a cena como pano de fundo do discurso.

"A minha luta, para a gente construir esses entregadores antifascistas, para gente poder lutar por uma alimentação, por um café da manhã, um almoço e uma janta tem sido tão difícil, companheiros, que vocês não têm noção. Ninguém aqui é empreendedor de porra nenhuma. Nóis é força de trabalho nessa porra!"

Quem é esse Malcom X aí?

Se você chegar lá no Jardim Guarau, periferia da zona oeste de São Paulo, poucos vão saber quem é Paulo Lima. Pode chamar por Galo, apelido que herdou por causa da moto 7 Galo que pilotava para trabalhar como motoboy.

Foi lá, em uma das ruas mais inclinadas do bairro, que ele nasceu e cresceu. Mas essa história toda começa quando Galo tinha 10 anos — hoje tem 31. "Com essa idade eu queria ser do hip hop, porque eu achava que os rappers eram bandidos", conta. Ainda moleque de tudo e já querendo ganhar o mundo, decidiu que era hora de começar a crescer. A ser respeitado, a parar com essa história de levar cascudo e tapa dos caras na rua. Na cabeça de menino, o único jeito para isso acontecer seria virar bandido.

Quando você olha e vê que quem é respeitado ao seu redor é bandido, você quer ser igual. Mas a kriptonita do bandido é a polícia, né? Da polícia tem que ter medo. Nessa mesma época, passei a ouvir rap, e via os artistas xingando e denunciando a polícia nas músicas. E ainda por cima eles falavam o endereço deles. 'Zona sul, Capão, pá, polícia racista'. Aí estava eu lá com 10 anos pensando: 'mano, se eles falam assim da polícia, esses devem ser os maiores bandidos de São Paulo. E se for para ser bandido, eu tenho que ser esse tipo de bandido'.

Foi por isso que ele passou a frequentar os rolês de hip hop pela capital. Em um desses momentos, encontrou o rapper e educador Dugueto Shabazz. De cara, perguntou: "mano, como faz para ser rapper?", e recebeu um "para ser rapper, tem que ler". Em vez da frustração, clássica quando a realidade é diferente do que se imaginou, Galo levou a orientação a sério. Passou a frequentar cada vez mais espaços voltados não só a música, mas também a poesia. Dugueto o levava constantemente para o sarau da Cooperifa, que ocorre toda terça-feira no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo. Também faziam uma troca: Dugueto dava um livro para ele e Galo, depois de ler, escrevia uma letra de rap com o que ele tinha lido e refletido.

O primeiro livro que ganhou foi "Negras Raízes" (1976), de Alex Haley. O segundo foi sobre Malcom X. A cada livro, uma nova letra era escrita. Quando entendeu que rappers não eram o que ele esperava, já era tarde demais. Estava completamente dentro do movimento.

Hoje, quando perguntado sobre como desenvolveu a consciência de classe e política que o levou a criar os Entregadores Antifascistas e mandar o recado no vídeo que viralizou nas redes, ele não pensa duas vezes para responder que o rap foi a maior escola que teve.

"Ali, vi que os rappers eram respeitados porque eram inteligentes. Porque cada letra de rap é uma aula de política. As músicas são cheias de referências. Quando ganhei o livro do Malcolm X, fiquei feliz porque estava curioso para descobrir quem era esse cara. Eu tinha escutado um rap do Rota de Colisão que falava: 'Jesus Cristo foi traído, Malcolm X foi também'. Aí eu pensava: pô, minha mãe ama Jesus, sabe? Quem é esse cara aí que tá sendo comparado com Jesus? E o rap faz isso, ele te faz ter vontade de descobrir quem são essas pessoas que eles estão falando sobre. Foi assim que eu tive toda a formação política que eu tento passar para os entregadores", explica Galo.

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

A pauta é uma só: comida

O grupo dos Entregadores Antifascistas ainda é muito jovem. Galo começou a denunciar em março de 2020 a precariedade à qual a classe está submetida. Só na semana passada surgiu um nome para eles. Por isso, pouco se sabe sobre o grupo. Quem são eles? De onde surgiram? E principalmente: por quais pautas esses entregadores lutam?

"Comida, comida, comida, comida, comida", responde Galo. "Nós só temos essa pauta. A gente só pede o básico do básico para o ser humano viver bem." Mas ele sabe que essa não é uma luta fácil. Entende que, por estar batendo de frente com grandes corporações, não pode perder o foco do objetivo maior dos Entregadores Antifascistas. De exemplo, ele cita o que ocorreu em abril deste ano, quando o iFood conseguiu derrubar a liminar que obrigava a empresa a pagar entregadores afastados por terem sido infectados com o novo coronavírus.

"Falo para meus colegas: companheiros, essa luta não é miojo. Não dá para esperar que os resultados apareçam em instantes. Nós não começamos a sofrer ontem e não vamos parar de sofrer amanhã. Eu penso que vai demorar muito tempo para a gente conquistar isso, mas é um caminho necessário que a gente precisa tomar porque aí na próxima luta, quem sabe, os resultados chegam mais rápido. É um processo lento, tem que ter calma", diz.

Por isso, para ele, agora não faz sentido ficar circulando entre pautas diversas. É preciso conseguir o mínimo. Até porque Galo entende que com a primeira vitória eles podem começar a construir a autoestima necessária para fazer outros entregadores entenderem que é possível conquistar o direito de ter dignidade dentro da classe.

"A missão dos entregadores antifascistas agora está sendo por comida. Tem gente que fala que eu sou comunista por isso, acham que eu sou infiltrado da KGB para inserir ideias comunistas nos entregadores. Eu preciso desconstruir essas mentiras e falar a verdade o tempo todo. E qual é a verdade? Comida. Simples assim. Nós não somos comunistas, a gente só quer comida."

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

Como tudo começou

Quando a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia do novo coronavírus no dia 11 de março, Galo estava na rua trabalhando. Enquanto parte dos moradores de São Paulo se trancava em casa para tentar conter o avanço da doença, ele continuava na rua realizando as entregas. As recomendações médicas de lavar as mãos com água e sabão ou passar álcool em gel para evitar o contágio da doença pouco fizeram efeito nos aplicativos. Nenhum deles procurou Galo para enviar kit de higiene para que continuasse trabalhando. Todo dinheiro para realizar os cuidados necessários para lidar com o cenário de pandemia saiu do bolso dos próprios entregadores.

Só que tem dias que a vida não colabora. E esse dia foi 21 de março de 2020. Coincidentemente, data do aniversário de Galo. Ele se aprontava para ir trabalhar. A cabeça cheia de tanto pensar. Na falta de comida dentro de casa. Na diminuição do trabalho. Foi trabalhar assim, "meio revoltado com tudo", como ele define. No decorrer do dia, o pneu da moto furou. Não conseguiria entregar o pedido. Ligou para o suporte do app, que o orientou a cancelar o pedido, assegurando que não haveria problema.

Ali mesmo, pegou o celular e gravou um vídeo em que denunciava o que estava acontecendo com ele. Em seguida, criou um abaixo-assinado para cobrar os aplicativos a disponibilizarem comida e kit higiene para entregadores — e que hoje está com mais de 344 mil assinaturas. Depois de ver que tinha, então, um certo apoio à causa, decidiu que era preciso se organizar com outros entregadores.

"Entrei em grupos de WhatsApp de entregadores e comecei a dar o papo, falava que a gente tinha que ter condições melhores de trabalho, que tinham que nos garantir alimentação. Fui primeiro no grupo dos motoboys, tentava falar com alguns na rua também. Fui falar com um, e ele me mandou ir para Cuba. Beleza. Fui falar com um segundo, e ele me mandou ir para Cuba também. Aí, irmão, George Orwell tinha que estar lá comigo para poder escrever um livro sobre aquele momento, porque olha? Aí eu entendi tudo", lembra.

O problema, segundo Galo, foi o seguinte: quando ele chegava com os papos de lutar por comida, pelo básico, a maioria dos motoboys encaravam isso como algum tipo de ofensa. Disse ter ouvido de que esse tipo de luta passava a ideia de que eles eram "passa fome" e que deveria parar de trabalhar como entregador se achava que a situação atual não estava boa.

Entendeu, então, que ali, naquele momento, não conseguiria nada. Estava falando com pessoas que realmente acreditavam ser empreendedores, autônomos, e não trabalhadores, a força de trabalho que ele cita no vídeo. "É tipo quando se tirava um preto da senzala, o colocava na casa grande e o cara começava a achar que isso fazia dele branco. Essa galera tá aí, acreditando que é branca, que é empreendedora do mesmo jeito", conta.

Por isso, decidiu abordar outro grupo, o dos ciclistas. Conseguiu pelo menos ser ouvido sem ser mandado para Cuba. Por causa deles, na última sexta-feira foi até a Paulista em apoio a uma manifestação organizada por outras frentes da classe. Tentou não se meter na liderança do ato o máximo que pode, mas não conseguiu por muito tempo.

Os caras queriam fechar a Paulista com 20 entregadores só, a gente ia tomar borrachada e acabar ser preso. Aí falei: 'não, rapaziada, assim não dá'. Tem que ser de outra forma. Tem que aprender a fazer as coisas antes de fazer de fato. Foi ali que nasceu esse movimento. Porque aí que eu convidei os caras para ir até a manifestação de domingo, para a gente observar e aprender junto como se constrói um ato junto com a galera do movimento negro para, quem sabe, um dia, a gente ter um ato grandão só nosso para falar das nossas pautas.

Galo

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Seu palanque é a rua

O discurso, Galo tem aperfeiçoado dia a dia. Sobre o que falar para conseguir chegar em mais pessoas, e trazê-las para a luta dos entregadores antifascistas. Durante a entrevista, ele ri ao relembrar todos os comentários que leu sobre a fala que fez na manifestação. Para muitos, impressionou a capacidade de resumir a luta de classes em apenas um minuto.

Apesar de não ter se preparado para aquele momento, ele sabia que precisava ser rápido. Principalmente porque os entregadores não têm tanto tempo disponível para sentar e ter conversas longas. Cada minuto desperdiçado faz a diferença na hora de fechar a conta no final do mês.

"Ninguém vai parar 10 minutos para te ouvir falar, mano. Tem que saber colocar sua ideia em um minuto. Você precisa falar pouco no começo que é para não assustar, depois a pessoa volta se quiser saber mais. Não tem como você mostrar uma ideia avançada para um companheiro que ainda não tem muita formação política. Você vai assustar o cara. É mais fácil ir passo a passo, desenvolvendo e ativando coisas no coração das pessoas até que elas queiram ir pra próxima etapa."

É assim que ele faz quando acha necessário mandar o papo para outros entregadores. O conteúdo das conversas é o mesmo que vem sendo citado durante toda essa reportagem: comida. Direitos básicos para conseguir trabalhar com dignidade.

A visibilidade que ganhou nos últimos dias e a facilidade com que conversa com a classe trabalhadora têm chamado atenção de muitos, inclusive de partidos políticos. Ele, porém, não pensa em usar disso como alavanca para um cargo.

Acredito muito no que eu estou fazendo agora, que é política de rua. Quem salva o mundo hoje está com o punho cerrado na rua, na linha de frente, do lado dos trabalhadores. A canetada dos políticos vai no rumo da rua, ela tem que seguir o que os punhos cerrados no ar estão pedindo. Mas eu não sou apolítico, eu gosto de política, eu estudo política. É que eu ainda acredito que a política de base é ainda mais necessária do que todo o resto.

Galo

Ele diz inclusive que vários partidos chegaram para tentar dialogar com ele. A maioria de direita. Agora, os de esquerda também estão na cola. "Na manifestação de domingo, dei uma bronca em um cara do PT, que só veio falar comigo aquele dia. Não é esse o Partido dos Trabalhadores? Como é que eles demoraram tanto tempo para chegar na gente? Aí eu entendo o que o Mano Brown falou sobre eles estarem distantes das bases", diz.

A cabeça do motoboy está totalmente focada em conseguir construir uma rede de apoio para entregadores que estão na luta por alimentação. A ideia dele, porém, não é criar um movimento homogêneo. O grupo se encaminha para construir uma frente feminista e outra LGBTQI+ que possa acolher as demandas particulares de todos da classe.

"Eu tenho medo de não conseguir isso tudo, fico pensando igual diz a música dos Racionais: 'Paulo, acorda! Pensa no futuro que isso é ilusão. O próprio entregador não tá nem aí com isso, não' Mas é isso. Eu sei que o caminho é esse, é empoderar essas pessoas. Tem que fazer a galera pensar. Os entregadores antifascistas é pra ser isso: um movimento de pensadores", diz.

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

Lutando agora para você não ter que lutar no futuro

"Imagina só você que é jornalista e está me entrevistando. Quando a uberização chegar na sua profissão, vão chegar com uma pauta na sua mesa, você vai ter só 30 segundos para pensar se quer a pauta, para decidir com quem falar, definir as perguntas que vai fazer, o formato da matéria? Tudo em 30 segundos. Se não aceitar ou se der algo ruim durante a produção da pauta, você corre o risco de ser bloqueada e não conseguir trabalhar mais." Esse é o exemplo que Galo usa para descrever o que ocorre hoje no dia a dia do entregador de aplicativo de comida.

Antes de entrar no universo dos apps de entrega, ele já havia sido motoboy em uma empresa em 2012. Saiu de lá quando sofreu um acidente e foi tentar outras profissões: camelô, floricultor, ajudante em mercado, instalador de internet. Foram várias as tentativas até que, no ano passado, decidiu voltar a realizar entregas quando a situação apertou dentro de casa, financeiramente.

Encontrou uma nova realidade, onde tudo é dominado por empresas de aplicativo de comida. Se antes ele conseguia trabalhar com a moto em apenas uma empresa, agora precisa trabalhar para uma corporação que faz a mediação entre ele e os restaurantes. Sem qualquer vínculo empregatício, o que também não lhe garante direitos trabalhistas.

Ele conta que um dos pontos que dificulta essa luta por melhorias no trabalho é a falta de noção da realidade de alguns entregadores. "Os caras acham que vão ficar ricos com isso. Vai nada, mano! Para com isso! Aí ficam fazendo protesto falando que são contra a CLT, por exemplo. Mano! É coisa de maluco. Eu não, eu quero CLT. Quero meus direitos trabalhistas garantidos."

Apesar de estar lutando contra esse sistema, ele relembra que o ideal não é parar de pedir nesses aplicativos, porque isso só prejudica o entregador, que fica sem demanda e, consequentemente, sem dinheiro. "A ajuda que as pessoas podem dar agora é apoio. Apoio a nossas ideias, apoio a nossas lutas. E também não custa nada oferecer um copo de água para o entregador que vai levar sua comida, não custa perguntar se ele não quer comer algo. A maioria dessas pessoas faz esse trabalho sem ter tomado um café. É ter empatia só", diz.

A tecnologia tem que servir para ajudar as pessoas, não para criar um sistema que só pensa em lucrar, lucrar, lucrar. E é por isso que hoje eu estou lutando para tentar barrar essa uberização do trabalho, para que no futuro ninguém tenha que passar por isso que a gente passa, que não tenha que ir para a rua lutar porque, olha, vou te contar, é muito difícil. Mas é necessário.

Galo

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