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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'O Poderoso Chefão': O melhor filme de todos os tempos completa 50 anos

Marlon Brando em "O Poderoso Chefão" - Paramount
Marlon Brando em 'O Poderoso Chefão' Imagem: Paramount

Colunista do UOL

23/02/2022 06h41

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Tudo que você precisa saber sobre a vida vai encontrar em "O Poderoso Chefão". Ao adaptar o romance de Mario Puzo, lançado três anos antes, o cineasta Francis Ford Coppola não apenas retratou a saga da família Corleone.

Ele capturou um pedaço da alma da América, mas uma América sombria, um reflexo de sofisticação e violência que mirava na história de um filho conduzido a assumir o legado do pai, mas também acertava em um país incerto de seu papel no mundo.

Cinco décadas depois, "O Poderoso Chefão", que retorna aos cinemas em cópias restauradas, tornou-se uma das obras mais influentes e grandiosas da história. Um filme que transcende as amarras do cinema para se tornar um marco histórico, cultural e estético que mostra o poder irrefreável da arte para transformar nossa visão de mundo.

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Michael e Vito Corleone tem uma relação de pai e filho... complicada
Imagem: Paramount

Curiosamente, "O Poderoso Chefão" não era para ser nada disso. Peter Bart, um executivo da Paramount nos anos 1960, buscou o manuscrito ainda não finalizado de Mario Puzo, então chamado "Máfia", e comprou seus direitos por pouco mais de US$ 12 mil. Uma barganha, considerando que o livro, já rebatizado "The Godfather", seria um sucesso que venderia nove milhões de cópias em dois anos.

A produção seria iniciada em 1970, com o presidente do estúdio, Robert Evans, ressaltando que preferia um diretor ítalo-americano para ancorar as raízes da trama. Sergio Leone, de "Três Homens em Conflito", foi convidado e recusou, ele mesmo preparando seu épico de gângster "Era Uma Vez na América".

Uma fileira de outros diretores foi considerada, de Peter Bogdanovich a Costa-Gavras, passando por Arthur Penn, Otto Preminger e Peter Yates. Foi quando o nome de Francis Ford Coppola, cineasta de ancestralidade italiana, foi colocado na roda. Além de preencher o requisito étnico que Evans buscava, Coppola saíra de um fracasso, "Caminhos Mal Traçados", e via seu estúdio, American Zoetrope, corroído por dívidas (problemas financeiros perseguiram o diretor por anos).

O cinema americano ao fim dos anos 1960 experimentava uma mudança radical. O domínio do sistema de estúdios, com autores e artistas trabalhando como assalariados em uma produção volumosa, não se sustentava nos Estados Unidos da contracultura. Novos autores, agora formados em universidades de cinema, fortemente influenciados pela produção que vinha da Europa, recusavam-se a trabalhar com regras imutáveis há décadas.

"Bonnie & Clyde", dirigido por Arthur Penn em 1967, e "Sem Destino", que Dennis Hopper rodou em 1969, apontavam os caminhos dessa "Nova Holywood", com autores dispostos a desconstruir os estereótipos da sociedade americana e revelar um lado mais sombrio e realista da sociedade. O público, atordoado com o baque do conflito no Vietnã, devorava os novos filmes com voracidade.

Faltou, claro, combinar com Coppola, que demonstrou zero interesse em rodar um filme sobre a máfia, baseado em um livro que ele considerava raso e sensacionalista. Mas a chance de sair de um atoleiro financeiro o impulsionou a aceitar o trabalho. Foi o início de uma relação bélica com o estúdio, com cada decisão do diretor sendo contestada por quem pagava a conta.

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Francis Ford Coppola dirige Marlon Brando em Nova York
Imagem: Paramount

A Paramount queria fazer com que a história de Puzo fosse atualizada nos anos 1950 para a América contemporânea, situando a trama em Kansas City e rodando em estúdio. Coppola bateu o pé em manter a ambientação de época, especialmente para não perder a cronologia de Michael Corleone como veterano da Segunda Guerra Mundial. Filmar em estúdio também estava fora de cogitação: a nova sensibilidade realista o fez optar por locações em Nova York e na Sicília. O estúdio capitulou.

Escalar o elenco foi outra batalha. Para o papel do patriarca da família Corleone, a Paramount queria Laurence Olivier (que recusou) ou Ernest Borgnine. Coppola, por outro lado, só enxergava Marlon Brando como o personagem. O astro havia perdido seu brilho ao longo da década de 1960, e tinha uma reputação complicada no set.

Coppola terminou por armar um teste de câmera na casa de Brando, já usando a maquiagem que o transformava em Vito Corleone, e colocou o material junto a testes de outros atores. Os executivos, boquiabertos, toparam, contanto que Brando seguisse algumas regras - em especial a de não colocar o cronograma de filmagens em risco.

Para o papel de Michael Corleone, filho de Vito que relutantemente assume os negócios da família, o estúdio tinha seus olhos nos nomes mais famosos da época, como Warren Beatty e Robert Redford. Jack Nicholson recebeu uma oferta, mas ele recusou ressaltando que o papel tinha de ser de um ator ítalo americano. Al Pacino, primeira e única opção de Coppola, terminou com o papel quando Robert Evans cedeu aos argumentos do diretor.

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Marlon Brando como Vito Corleone em 'O Poderoso Chefão'
Imagem: Paramount

As filmagens dividiram-se, então, entre Nova York e a Itália. Existe uma qualidade nas imagens de "O Poderoso Chefão" que dialoga com a intenção realista de Coppola, e também com um outro modo de encarar o cinema.

Em vez de usar equipamentos mirabolantes para capturar as imagens, como helicópteros ou efeitos óticos, o diretor e seu fotógrafo, Gordon Willis, optaram por uma formatação padrão, com o objetivo de cada tomada ser admirada como uma pintura. Essa proximidade, combinada à alternância de tomadas claras e escuras ao longo do filme, ajudam a trabalhar as emoções dos personagens em cena, ampliando a conexão com a plateia.

Além disso, o estúdio pediu a Coppola para que aumentasse o impacto da violência ao longo do filme, causando uma catarse emocional na plateia que ajudaria seu potencial comercial - sugestão que o diretor acatou com brio, em especial na cena em que Sonny Corleone, interpretado por James Caan, sofre uma emboscada e é metralhado até a morte.

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O trágico fim de Sonny Corleone, papel de James Caan
Imagem: Paramount

A violência em "O Poderoso Chefão", vale ressaltar, causa mais impacto do que em qualquer filme de gângster até então. Não há ao longo da história nenhuma menção a "máfia" ou a "cosa nostra", termos que estereotipavam a comunidade ítalo americana.

Além disso, não havia a clara divisão entre o bem e o mal observada em outros filmes do gênero, com mocinhos impolutos e bandidos cruéis. "O Poderoso Chefão" pode trazer a saga de uma família atolada em atividades criminosas, mas nada disso é mostrado. Quando a cabeça decapitada de um cavalo é jogada na cama de um produtor de cinema que não se curvou ao Dom, entretanto, sabemos que são pessoas com quem não se deve brincar.

Essa dualidade, essa enorme área cinzenta, de alguma forma capturou a angústia de uma sociedade que buscava, especialmente na arte, alguma válvula de escape para uma realidade longe da perfeição. "O Poderoso Chefão" trouxe isso não em um filme B, largado em cinemas de quinta. Era uma produção bem lapidada, com elenco de primeira linha e a assinatura de um grande estúdio.

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Marlon Brando transforma-se em Vito Corleone
Imagem: Paramount

O filme finalmente estreou em Nova York em 14 de março de 1972, e lentamente foi expandindo seu domínio nas redes de cinema ao longo do país. Recordes de bilheteria foram esfacelados, e "O Poderoso Chefão" terminou como a maior bilheteria do ano.

Produzido com cerca de US$ 7 milhões, a produção faturou US$ 134 milhões só nos Estados Unidos. Indicado a 11 Oscar, faturou as estatuetas de melhor filme, ator (para Marlon Branco, que recusou o prêmio) e roteiro adaptado (por Coppola e Puzo).

O sucesso apontou um novo caminho para o cinema americano. Os estúdios passaram a depositar mais confiança em seus autores, o que resultou em um dos períodos mais ousados e criativos da história de Hollywood. Nos anos seguintes, pérolas como "Todos os Homens do Presidente", "Um Dia de Cão", "Taxi Driver" e "Rede de Intrigas" selaram, à perfeição, a união de comércio e arte, resultando em filmes extremamente populares e cinematograficamente perfeitos.

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A violência chocante de 'O Poderoso Chefão'
Imagem: Paramount

A carreira de Coppola decolou depois de "O Poderoso Chefão". Dois anos depois ele trouxe duas novas obras primas em "A Conversação" e "O Poderoso Chefão - Parte II", que ampliou o escopo do original trazendo uma trama contemporânea intercalada com a ascensão de Vito ao poder em Nova York - na juventude ele foi interpretado por Robert De Niro.

Em 1979, ele mergulhou no pesadelo que foram as filmagens de "Apocalypse Now", terminando uma década brilhante e iniciando uma era produções rodadas para que ele pudesse manter sua produtora com o pescoço fora d'água. Nos anos 1980, apesar de assinar grandes filmes, Coppola só encontrou sucesso comercial em "Vidas Sem Rumo" e em "Peggy Sue - Seu Passado a Espera".

O legado de "O Poderoso Chefão", porém, segue como o ponto alto da carreira do diretor. Filmes sobre gangsters eram, até então, um subproduto em Hollywood, um gênero que lidava com estereótipos para diversão ligeira. A saga da família Corleone trouxe profundidade até então impensada.

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Francis Ford Coppola cercado pelo clã Corleone em 'O Poderoso Chefão'
Imagem: Paramount

Até porque existem várias leituras sobre a narrativa do filme. "O Poderoso Chefão" é sobre o começo da América corporativa, representado pela ruptura dos gangsters "tradicionais", obrigados a embarcar em outro tipo de contravenção, em especial o tráfico de drogas, o que abalava seus "valores" tradicionais.

Parte da trama tecida originalmente por Puzo é justamente a resistência de Vito e seu confronto com outras famílias para manter a integridade do clã. Por outro lado, "O Poderoso Chefão" também é sobre o fim do sonho americano. Michael Corleone, afinal, volta da guerra disposto a seguir uma vida reta, mas é tragado para o mundo de violência de sua família, até que por fim abraça seu legado. O final sóbrio e sem vitoriosos apontou que o cinema estava pronto para olhar para suas próprias feridas.

Desde então, qualquer obra audiovisual que traga o crime organizado como tema deve tudo ao filme de Francis Coppola. Sem "O Poderoso Chefão" não teríamos "Os Bons Companheiros", obra-prima de Martin Scorsese. Sem sua influência brutal a TV não teria sua melhor série em todos os tempos, "The Sopranos".

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Al Pacino como Michael Corleone em 'O Poderoso Chefão'
Imagem: Paramount

Além disso, frases e imagens do filme tornaram-se parte do vocabulário da cultura pop moderna, de "Vou fazer uma proposta que ele não pode recusar" a "Deixe a arma, pegue o cannoli". "O Poderoso Chefão" tornou-se videogame em 2008, e seus personagens já foram imortalizados em miniaturas Funko Pop.

50 anos depois de mudar o cinema, deixando sua marca histórica e cultural, "O Poderoso Chefão" ainda impressiona como um pedaço de cinema irretocável, um filme que retratou um recorte da história americana contemporânea e, no processo, capturou um momento de ruptura social e política.

As lições traçadas por Francis Ford Coppola seguem impávidas. "O Poderoso Chefão" segue como referência sobre cinema, sobre atuação, sobre como adaptar uma obra. No processo, terminou como uma obra sobre integridade artística, sobre um microcosmo que, após cinco décadas, permanece relevante. Uma obra-prima que diz tudo que você precisa saber, claro, sobre a vida.