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'Pureza', Dira Paes (e só ela) brilha em filme sobre luta contra escravidão
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Dira Paes é um monumento. Uma das atrizes mais festejadas do país, não há papel em suas mãos que não transborde verdade, que não seja um personagem completo, que não consiga uma inevitável conexão emocional.
Seu talento, claro, vem com um custo. Quando a vemos em cena, outros elementos podem ser eclipsados por sua figura. O holofote solitário sobre ela, contudo, é certeza em produções menos esmeradas, em que as outras partes simplesmente não acompanham o ritmo que sua presença imprime.
Esse é exatamente o caso de "Pureza". Dirigido por Renato Barbieri, o filme é uma biografia de Pureza Lopes Loyola, que nos anos 1990, munida apenas de uma Bíblia e de uma fotografia, parte do interior do Maranhão em busca de seu filho, que saiu de casa para encarar o garimpo no Pará em busca de "uma vida melhor" e nunca mais deu notícias.
A jornada de "dona" Pureza termina por revelar a escravização de trabalhadores humildes em propriedades abastadas no Norte do país. Ao ouvir que capatazes recrutam força braçal, ela infiltra-se em uma dessas fazendas como cozinheira em uma busca quixotesca por seu filho.
Existe, claro, material humano riquíssimo para um filme de várias camadas. Além do ponto de vista de uma mãe em busca de seu filho, a história de "Pureza" passa pela violência que domina o campo no Brasil profundo.
É um relato sobre o descaso de autoridades e políticos, muitas vezes coniventes e até cúmplices do crime de escravidão. Revela, ainda, a dificuldade em romper as barreiras burocráticas para organizar, de fato, uma solução.
O filme de Barbieri, entretanto, escolhe um registro raso da história. Ao desenhar heróis e vilões absolutos em uma tapeçaria que pretende ser mais complexa, seu filme remove do drama de quem é reduzido a escravo, sem direitos e sob o jugo de feitores e jagunços, a profundidade que o tema exige.
Não há noção de passagem do tempo, não há personalidade nos coadjuvantes. O protagonismo de Pureza é igualmente achatado. Na vida real, ela passou três anos em busca do filho, testemunhando o horror da violência contra o trabalhador rural. Seu testemunho foi fundamental para a criação da primeira ação estatal de combate ao trabalho análogo à escravidão no país.
"Pureza", por outro lado, contenta-se em deixar de lado as ramificações de sua história para pintá-la como uma heroína sem grandes camadas, uma pessoa que enfrenta no grito e na raça homens armados e uma situação de opressão extrema. Sem a compreensão dos conflitos que movem os personagens, ficamos à deriva.
O Brasil vive hoje uma situação limite na luta pelos direitos humanos, enfrentando retrocesso histórico. A revelação de casos recentes de trabalho análogo à escravidão, inclusive em centros urbanos e no coração de famílias "de bem", acontece por denúncias de vizinhos e conhecidos, e não por uma ação organizada pelos poderes constituídos.
"Viúvas da Terra", livro reportagem lançado em 2004 pelo jornalista Klester Cavalcanti, já denunciava com documentos, datas, provas e testemunhos, o absurdo histórico da escravidão no Brasil moderno. Não seria, portanto, por desconhecimento que as autoridades cruzam os braços.
Uma obra como "Pureza" chega no momento oportuno para ao menos causar uma reflexão, para recolocar o debate em foro público. A arte pode não mudar o mundo, mas tem o mérito de ser o motor que impulsiona os homens capazes de operar tais mudanças.
Um filme, entretanto, não pode existir somente com boas intenções. Antes de ser uma denúncia, uma reflexão ou um alerta, ele precisa ser cinema. Dira Paes, mesmo lidando com um roteiro aquém do peso de sua personagem, é a única em cena que se faz ouvir. Por ela, e só por ela, "Pureza" merece ser descoberto.
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