Sucesso em 'Cangaço Novo', Alice Carvalho revela insegurança com trabalho
A personagem de tia Zeza em "Cangaço Novo" diz uma frase que sempre emociona Alice Carvalho, 27: "A irmandade é um lugar pra gente não se esquecer de quem a gente é". A atriz que dá vida a Dinorah na série pensa, inclusive, em tatuar as palavras.
"Só acreditei que fiz um bom trabalho depois que a série foi lançada. Sempre que enfrentava dificuldades ou me questionava sobre a minha capacidade enquanto atriz, tentava não me esquecer de quem sou", diz.
Pode ser difícil imaginar que Alice, que encantou a crítica e novos fãs com a interpretação na série da Amazon Prime Video, sentiu-se insegura. O papel em "Cangaço Novo" lhe rendeu fama e um contrato com a TV Globo, onde fará o remake de "Renascer".
A atriz é bastante cuidadosa com as palavras. Capa dos principais cadernos de cultura nas últimas semanas, não quer ser representante de causas e estranha o alcance repentino de sua voz. "Fico com medo de falar besteira", diz.
"Nem é por querer ser vista como uma pessoa irretocável, porque não sou e não vou ser nunca. Sou cheia de defeitos, toda cagada", ri. "Tento ter muito cuidado com o que falo para não ser vista como front de certos assuntos, já que existem pessoas muito mais capacitadas para falar", diz ela, que foi criada em Parnamirim, no Rio Grande do Norte.
Em entrevista a Universa, a atriz contou como ser sobrevivente de um abuso na infância é parte de sua atuação na tela. E, por outro lado, como viver Dinorah também a ajudou elaborar o trauma, que ela já tem exposto em seus trabalhos artísticos. Escreveu, por exemplo, "Inkubus", um monólogo sobre a violência sexual e de gênero.
É um processo de cura constante. Dinorah me trouxe uma outra forma de olhar para isso e me permitir sentir raiva, me permitir colocar a raiva para fora, para além da tristeza e do silêncio, que acho que foi um caminho para onde fui quando mais nova.
Confira a seguir a entrevista.
UNIVERSA: Na sua opinião, por que a série ganhou destaque, inclusive internacional?
Alice Carvalho: A série ganhou essa proporção porque retrata o que algumas pessoas chamam de regionalismo ou algo que é muito particular do Nordeste. É uma história que fala sobre conflitos puramente humanos. E isso gera uma identificação em qualquer lugar do mundo.
É uma história sobre reconexão com as raízes e com a ancestralidade. Também é uma história de luta social e por terra. E isso se observa em várias sociedades. No Brasil, isso ficou muito mais latente, porque existe um sentimento de retomada, que precisamos retomar o nosso lugar no mundo e não arredar dos nossos direitos.
A série saiu em um momento muito propício para essa identificação. Um momento em que boa parte dos brasileiros estão mais aliviados diante da situação política e dos rumos da cultura e economia. Ela faz um intertexto muito bonito com a realidade do povo brasileiro, mas mais ainda a realidade do sul global, dos países emergentes.
Falar de sertão e do cangaço pode ser considerado um estereótipo quando se fala de Nordeste. Como "Cangaço Novo" atualiza esses temas?
Concordo que falar de Nordeste e remeter ao cangaço é nossa primeira sinapse, mas porque faz parte da identidade cultural. E não só do povo nordestino, mas do povo brasileiro. O banditismo por necessidade ou o banditismo por pura maldade, como já cantava Chico Science, está no nosso imaginário de um modo geral.
Newsletter
HORÓSCOPO
Todo domingo, direto no seu email, as previsões da semana inteira para o seu signo.
Quero receberNão sei se atualizar seja a melhor palavra, porque não sei se devemos nos dar essa importância. Não inventamos a roda. Mas a série fala de temas que estão presentes na sociedade, como 'novo cangaço', que na verdade se chama domínio de cidades e está presente não só no Nordeste, mas em várias cidades do interior do Brasil.
O que 'Cangaço Novo' faz de diferente passa por nossas escolhas artísticas de fugir de estereótipos. Isso vai desde escolher filmar em locação e não filmar com tela verde até a fotografia, que foge daquele laranja que já conhecemos em outras produções audiovisuais. Escolher um sertão que é rochoso e pedregoso, mas também mostrar o verde em alguns momentos sim, porque isso existe.
Desde o início, o canal, a produtora, a direção e todos os cabeças do projeto buscaram muito obstinadamente pela verdade na tela. Quer falar do sertão? Vá morar nele. Quer personagens sertanejos e nordestinos? Chame sertanejos nordestinos para contar as suas histórias.
Falo muito do meu caso: não sou uma atriz famosa. E a escolha da direção, do canal e da produtora por me entregar a Dinorah passou por se optar por atrizes e atores que emprestassem verdade à imagem que fosse impressa na tela. Tudo o que aconteceu foi consequência dessas escolhas primárias.
O faroeste nas produções brasileiras também está muito relacionado com o Nordeste, o "nordestern". Tivemos recentemente "Bacurau", agora "Cangaço Novo", que seguem o gênero. Você acha que existe um resgate deste faroeste brasileiro?
Acho fantástico. Falando de uma maneira mais técnica, não sei se resgate seria a palavra, mas de alguma maneira é uma ode a esses ancestrais. E aqui falamos de Lima Barreto, Glauber Rocha, Geraldo Sarno, que é uma grande referência nos prólogos em preto e branco de "Cangaço Novo". Também falamos de "Baile Perfumado", de Lírio Ferreira e Paulo Caldas.
Tem uma frase de Zeza na série que me emociona muito: 'A irmandade é um lugar para gente não esquecer quem a gente é'.
Essas escolhas feitas pela série são técnicas e artísticas, mas também foram feitas para não esquecemos quem somos. O audiovisual brasileiro, ao passo que está em ascensão com grandes representantes contemporâneos, levando o nome do nosso cinema mundo afora, como Gabriel Martins, Daniel Rezende, Kleber Mendonça Filho, Karim Aïnouz, Anita Rocha da Silveira, ainda está brigando por causa de tela.
A volta do nordestern e de outras formas de contação de história é para que não nos esqueçamos do nosso potencial.
E por que que essa frase te emociona tanto?
Talvez agora meu maior desejo seja tatuar essa frase de tia Zeza. Se Dinorah veio até a minha direção e fui até a direção dela é porque nunca deixei de esquecer das minhas raízes.
Eu encontrava força nisso durante os oito meses de filmagem —com saudade de casa, longe de minha família, do meu cachorro. Só acreditei que fiz um trabalho bom depois que a série foi lançada. Sempre que enfrentava dificuldades ou me questionava sobre a minha capacidade mesmo enquanto atriz, tentava não me esquecer de quem sou.
Que referências femininas você buscou para compor a Dinorah, que virou esse ícone de mulher forte?
As referências primárias são as mulheres da minha família. Venho de um lar de mulheres muito fortes. Já as referências audiovisuais encontrei nos filmes de ação, para buscar guerreiras, anti-heroínas e anti-vilãs. Elas estavam presentes no cinema estadunidense, como Alicia Vikander em 'Tomb Raider'.
Também olhei para personagens fortes fora do gênero. Todas as personagens de Viola Davis, por exemplo, têm essa presença cênica de uma mulher com fibra, que também me contaminou um bocado.
Essas foram todas as referências, principalmente em se tratando de preparação física mesmo, de tônus muscular, de fibra. Mas também tentei fazer à minha maneira e de uma forma que não fosse hiperssexualizada.
Queria fugir da heroína estereotipada, de uma guerreira de ação que está ali como enfeite do protagonista masculino ou que está ali à sombra, a bonitinha que pega arma e sabe atirar.
Busquei essas referências visuais, olhei para minha família, mas o que não queria e o que Dinorah não merecia também me norteou bastante.
E como você acha que o tema da cumplicidade feminina apareceu na série?
Desde o momento que li o roteiro, li uma história irmandade. Vi como um lar de mulheres muito potentes e muito endurecidas pela lida do cotidiano e da vida, pela luta pela sobrevivência.
O afeto apareceria de uma outra forma. A sororidade entre Dilvânia e Dinorah é muito nítida na tela pelo olhar. Elas duas têm coisas que compartilham juntas que ninguém mais compartilha.
O abuso que as duas passaram foi um turning point para ambas. Dilvânia implode, vai para dentro, fica sem falar. Ela silencia como muitas mulheres que passam por esse tipo de violência fazem. Dinorah foi para um lugar oposto, para sobreviver.
Às vezes, produções audiovisuais retratam a violência sexual de uma forma muito distorcida. Como você acha que a série retratou a violência sexual e seus traumas?
Acho que de uma maneira muito crua e realista. Particularmente, esse é um dos pontos mais sensíveis para mim na história e me atravessa de uma maneira que me deixa sem palavras. Também sou uma criança sobrevivente de abuso na infância. Me tocou de uma maneira muito pessoal. É um momento da história muito próximo da realidade de muitas meninas no Brasil.
Viver esse papel a ajudou a elaborar o que você também viveu?
Completamente. Em 2018, escrevi "Inkubus", um monólogo com o qual circulei em alguns teatros até 2020, alguns meses antes de fazer o teste para Dinorah. O espetáculo falava sobre essa experiência e era algo com que já vinha trabalhando em um ambiente seguro de terapia desde 2016.
A arte, associada com a terapia, me ajudou a desvelar meu medo de falar sobre esse assunto. E de me expor mesmo. Falar sobre algo tão íntimo é uma exposição muito grande e que, para muitas de nós, é um ponto de vergonha. Mas entendi que, através do meu trabalho, eu poderia ser uma voz de alerta para esses temas delicados por ter conhecimento de causa, por ter vivido.
É um processo de cura constante. Dinorah me trouxe uma outra forma de olhar para isso e me permitir sentir raiva, me permitir colocar a raiva para fora, para além da tristeza e do silêncio, que acho que foi um caminho para onde fui quando mais nova.
Não tem palavras para descrever a importância da Dinorah nessa minha evolução pessoal. Não vem de hoje, mas ela foi um degrau muito importante —me permitiu sentir raiva.
Nós, meninas e mulheres, somos ensinadas desde novas que não podemos sentir raiva, não podemos falar palavrão, não podemos ser violentas e temos que aceitar as coisas caladas. Muitas vezes eu mesma, me achando tão para frente e desconstruída, me vi na sala de preparação com esse medo.
Desde minha primeira conexão com a personagem, pensei que sairia desse processo outra pessoa. Foi o que aconteceu.
Você já mencionou que tem TDAH. Como você descobriu?
Fui diagnosticada na infância, justamente no teatro. Por isso falo que foi quase uma salvação terapêutica, mas era bem difícil na escola. Depois, voltei a ter acompanhamento. Hoje lido de forma mais atenuada.
Me arrependi de ter falado sobre isso publicamente porque não sei se queria ser um bastião de algo. Tento ter muito cuidado com o que falo para não ser vista como fronte de certos assuntos, já que existem pessoas muito mais capacitadas para falar.
E como você está lidando com esse alcance que tem agora?
Sou uma geminiana muito comunicativa. Mas sou muito tímida ao mesmo tempo. Está sendo muito engraçado e em algum lugar, apavorante. As pessoas te encontram na rua e são íntimas. O que acho mais legal é quando me chamam de Dinorah, acho que meu trabalho fez total sentido.
Também me emociona muito as palavras que as pessoas me dizem, principalmente as mulheres. É muito bonito como a personagem toca as mulheres.
Mas também fico com medo de falar uma besteira.
As pessoas agora me veem como referência e não quero escorregar. Não quero falar algo que desanime a caminhada de alguém. Nem é por querer ser vista como uma pessoa irretocável, porque não sou e não vou ser nunca. Sou cheia de defeitos, toda cagada.
É um pouco de 'não me siga, porque também estou perdida e buscando me encontrar nesse mundo'. Mas agradeço o carinho.
Vai ter segunda temporada da série?
Todo mundo está perguntando e não tenho essa informação. Ninguém tem. Dá para perceber na tela o tamanho da produção. Eles devem estar num momento de avaliação de todas as variáveis, porque agora também depende de muitas agendas.
Não sei se até o fim do ano devemos ter uma notícia. Mas meu desejo é continuar, estou morrendo de saudade da Dinorah.
Deixe seu comentário