Armação e estigma: a história das 'bruxas' de SP inocentadas na Inquisição

A Inquisição, instaurada pela Igreja Católica com o propósito de perseguir, julgar e punir os que se desviavam da fé, também lançou sua sombra sobre o Brasil. Em Jundiaí, no interior paulista, duas mulheres, Thereza Leyte e sua filha Escholastica Pinta da Silva, quase foram vítimas da fogueira acusadas injustamente de bruxaria pela Justiça Eclesiástica, em 1754.

Na época, os condenados pelos agentes da Igreja eram queimados vivos em Lisboa, onde ficava a sede portuguesa da Inquisição e os processos eram finalizados.

Thereza e Escholastica foram acusadas da morte de Manoel Garcia, marido de Escholastica. A Igreja acreditava que as duas mantinham um pacto com o diabo e alegava que não apenas haviam enfeitiçado Manoel e o levado a adoecer por meio de magia, mas que teriam feito o mesmo com outros homens, movidas por vingança.

Registros desse episódio foram resgatados dos arquivos da Cúria Metropolitana de São Paulo e se tornaram o foco da pesquisa de mestrado de Narayan Porto, filóloga da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), intitulada "Feitiçaria paulista: transcrição de processo-crime da Justiça Eclesiástica na América portuguesa do século 18".

Porto detalhou o conteúdo das acusações, à TV USP:

"Elas foram acusadas de feitiçaria, e algumas práticas são mencionadas na documentação, como 'Escholastica causou feridas nas pernas do marido, apenas de tocá-las', ou então 'deixou-o cego só de tocar nos olhos dele'. E 'Manoel Garcia ficou enjoado, sentiu dores no estômago, porque a mulher mexeu com as mãos num prato seu de comida'. Também encontraram seus sapatos enterrados com pedaços de uma camisa sua dentro."

O processo contra Thereza e Escholastica foi aberto oito anos após a morte de Garcia, e a Justiça Eclesiástica ouviu testemunhas, todas do sexo masculino.

"Estigmatizar mulheres — e, mais raramente, homens — era meio caminho andado para a construção coletiva do estereótipo da feitiçaria", explica a historiadora Laura de Mello e Souza em seu livro "O Diabo e a Terra de Santa Cruz".

Mas, apesar das hostilidades da Igreja, as testemunhas defenderam as rés. Mencionaram que Manoel morreu de lepra e que Francisco, o autor das denúncias, já havia sido preso e castigado por difamar as duas. Elas inclusive receberam dele um pedido público de desculpas.

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Era comum que a Igreja convocasse a população para denunciar pessoas consideradas hereges e submetê-las a interrogatórios preliminares, visando controlar e disciplinar a vida social. Com frequência, amigos denunciavam amigos e familiares eram coagidos a delatar parentes.

No caso de Escholastica e sua mãe, havia ainda um interesse na herança deixada por Manoel, diz Porto.

"Contrataram esse feiticeiro, Francisco, para que ele disseminasse boatos sobre as duas mulheres, alegando que eram bruxas e que haviam enfeitiçado Manoel", afirma.

Após a conclusão do processo em 1755, Thereza e Escholastica foram inocentadas, e os parentes de Manoel arcaram com as despesas do processo.

Do ponto de vista histórico, a descoberta desse documento revela a vulnerabilidade das mulheres após a morte de uma figura masculina dominante.

"Os ataques diretos e simples contra as mulheres demonstram que elas enfrentavam dificuldades para se defenderem e, com frequência, podiam ser acusadas de bruxaria e heresia em questões de fé", explica a também filóloga Nathalia Fernandes, da FFLCH/USP.

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A "caça às bruxas" só chegou ao fim em 1821, com a extinção do Tribunal do Santo Ofício, conhecido como Inquisição. Os registros históricos dessa época são armazenados na Torre do Tombo, em Portugal.

(Com informações de texto publicado em 21 de julho de 2019)

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