Renata Gaspar diz que já foi homofóbica e conta como aceitou sexualidade
A primeira vez que viu um beijo entre meninas, ainda na adolescência, a atriz Renata Gaspar, 37, lembra-se de ter sentido repulsa. Hoje, no ar em "Terra e Paixão", ela interpreta Mara, que vive um relacionamento com Menah, vivida pela atriz Camila Damião.
Renata, que é bissexual e casada desde 2020 com a empresária Bebel Luz, conta que a história de amor entre mulheres na novela a emociona, por ser a referência de relacionamento LGBTQIA+ que ela não teve quando era mais jovem.
A atriz cresceu na zona norte de São Paulo e contou a Universa que lutou contra seus próprios desejos na adolescência. Trocava, por exemplo, o gênero de pessoas que a interessavam ao contar histórias para amigos. "Tinha muita raiva e nojo. Toda aquela homofobia se voltou contra mim", diz.
Nos últimos anos, a atriz tem dado vida a personagens que viveram violência de gênero. Além de Mara, que teve um relacionamento com um homem abusivo antes de encontrar o amor de Menah, Renata também interpretou Stephany, personagem que foi vítima de um feminicídio em "Um Lugar ao Sol". Para a atriz, a violência de gênero tem sido retratada, cada vez mais, com complexidade e cuidado pela teledramaturgia brasileira.
Universa: Na sua opinião, como os roteiros têm trabalhado o tema da violência de gênero?
Renata Gaspar: Esses temas são explorados cada vez mais com refinamento. Antes, a violência de gênero ou doméstica seria retratada com um homem batendo em uma mulher. Agora, pelo menos a Globo tem feito isso, estamos contando que não é apenas isso. Minha personagem sofre uma violência patrimonial e não tem violência física. Também há abuso psicológico.
A cultura de violência sexual e patrimonial contra a mulher tem que ser mostrada e contada. Tudo isso é violento. Não é porque estou sendo amada e cuidada pelo meu marido ou pai que isso que não está acontecendo.
Agora, essa violência patrimonial tão clara está sendo mostrada de uma forma que, pelo menos eu, nunca tinha visto. A novela tem sido didática e expõe coisas que parecem bobas —como o marido quebrar o computador da mulher— como uma forma de violência.
Estão destrinchando e começando a expor, de forma cada vez mais específica, essas "sutilezas" da violência, que é a base dessa cultura.
E a que você atribui esse refinamento do roteiro: a melhora dos debates sobre esses temas ou a maior presença de mulheres roteiristas trabalhando nessas produções?
Atribuo principalmente por terem mulheres no roteiro hoje, com certeza. Os homens também estão se atualizando, mas principalmente por terem escutado isso de uma mulher ou lido alguma coisa escrita por uma mulher.
Com certeza, hoje existem mais mulheres escrevendo, mais mulheres negras, mais mulheres trans, homossexuais. A diversidade que está refletida nos roteiros agora é por isso.
E como foi a recepção das mulheres a essas personagens?
Em "Um Lugar ao Sol" recebi muitas mensagens. Muitas mulheres me escreveram no Instagram para contar histórias. Eu não tinha nem visto muitas dessas mensagens, estavam naquela caixa de solicitações. Vi um ano depois muitas mensagens e continuo respondendo. É muito, muito forte mulheres te dizerem "vivo isso e senti uma esperança" ou "percebi agora que vivo isso e não é normal", muitas agradecendo.
É muito tocante isso porque, para fazer a personagem, pesquisei muitas histórias de mulheres. Ficava com elas na cabeça, sabe? Parece que estava com todas essas mulheres na minha mente naquele momento, realmente representando, contando aquilo. Receber esse tipo de feedback foi muito emocionante para mim.
Em 'Terra e Paixão', Mara se encontra num relacionamento homoafetivo. Como foi a descoberta da sua sexualidade?
Vim de uma família bem conservadora da zona norte de São Paulo. Comecei a fazer teatro com 14 anos e me formei no curso profissionalizante junto com a escola regular. A bolha em que eu vivia furou quando entrei no teatro e conheci outro universo fora daquele bairro.
Me descobri bem homofóbica, na verdade. Fiquei obcecada por uma menina do grupo, pensava que ela era muito talentosa, muito bonita, não parava de falar nela. E ela namorava outra menina e a primeira vez que as vi juntas pensei: 'Eca!'.
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Quero receberNão tirava essa menina da cabeça, mas neguei esse sentimento por muito tempo. Tinha muita raiva e nojo. Toda aquela homofobia se voltou contra mim. Me odiava, odiei a menina. Foi um longo processo até o momento que falei 'é isso mesmo'.
Como isso aconteceu?
Uma hora não dava mais, você só pensa naquela pessoa, em situações com ela. (risos)
Aquela coisa de primeira paixão mesmo, adolescente. É muito intenso. E isso junto com a descoberta da sexualidade, veio tudo em dobro.
Tinha um melhor amigo no teatro que também estava descobrindo a sexualidade dele e, por uns dois anos, trocamos os nomes e invertemos o gênero das pessoas que nos interessavam.
Escondíamos um para o outro porque não tínhamos referência, não tínhamos com quem falar. Minhas amigas viam aquilo como algo muito errado, feio. Até que uma hora nos assumimos juntos. Ele me contou que, na verdade, todas aquelas meninas de quem ele contava histórias eram caras. Passamos pelo mesmo processo.
Uma hora você se dá conta que só está se enganando. Só que demorou muito.
E como foi a recepção na sua família?
Minha família só foi saber quando namorei de fato, aos 18 anos, e não fui bem recebida. Isso foi bem complicado na minha família por muito tempo.
Senti menos dificuldade fora de casa do que dentro de casa. Não sofri nenhuma violência ou preconceito tão direto nas ruas. Mas hoje está tudo bem, foi um processo.
Essa falta de referência pode transformar nesse auto-ódio que você descreveu?
Sim. E por isso fico muito feliz de estar fazendo uma personagem como a Mara, junto com a Menah [interpretada pela atriz Camilla Damião], uma menina preta. As duas se assumem sapatão simplesmente porque se gostam. Não é mais uma zoação ou um estereótipo sobre isso, como era mais comum antes. Antes você via mulheres lésbicas na comédia ou como coisas chapadas.
Tive muito cuidado com a Mara, para não ser estereotipado, porque ela é caminhoneira. É para ver aquelas mulheres na tela e querer vê-las juntas, torcer por isso como algo normal, tirar ideias estereotipadas que minha geração aprendeu.
Além de ser atriz, você é comediante. Qual a diferença para ser uma atriz que faz humor?
Sou uma atriz e comediante. Não tenho muita crise com isso. Gosto muito de transitar. Para mim, fazer comédia é muito fluido. É um lugar muito gostoso e tranquilo, é onde me sinto em casa. Mas também gosto de mergulhar profundamente no personagem. Até na comédia gosto de fazer isso. Coloco ambas as coisas na mesma página. Lido com a mesma seriedade e leveza.
Nesse ambiente muito masculino da comédia, você já sofreu algum episódio de preconceito?
Lá atrás nem me identificava como comediante. Só fazia imitação, zoeira. Como não me considerava nesse arquétipo de comediante, não sofri muito diretamente como muitas mulheres que querem trilhar a carreira de comediante. Não fiz esse movimento.
Vivi mais esse tipo de situação em sala de roteiro. Por exemplo, estava em um time de homens e eles não me entendiam. Eu dava ideias doidas e "fora da caixa", mas também era uma mulher se colocando num lugar muito masculinizado. Era outra época. Via que não tinha um espaço de entendimento, de compreensão.
Você estava no núcleo de humor da Globo na época que as denúncias de Marcius Melhem vieram à tona. Como você, que tinha certa proximidade com ele, recebeu essas denúncias?
Quando começaram as denúncias, fiquei chocada. Não sabia das histórias e tem coisa que só soube agora. Conversei com as meninas depois, as que eu tinha mais proximidade.
É um caso muito delicado. Tenho muito cuidado de falar ou expor as meninas, então acompanho mais, decidi não me envolver. Não sofri nada diretamente, então não senti que seria natural fazer isso.
Apesar disso, depois as fichas caem. Havia coisas que não eram legais mesmo. Mas sou muito contra o cancelamento de alguém —tenho dificuldade com isso, não acho justo. Mudanças precisam acontecer mesmo e tem um jeito de fazer isso.
Que tipo de fichas?
Brincadeiras no trabalho. Principalmente de uma geração que faz brincadeiras sexuais o tempo todo. Estamos descobrindo o que é assédio agora, dando nome agora para as coisas
Diziam que eram piadas, mas por que mulheres se sentiam tão desconfortáveis com isso? Mas isso era a norma. Agora, estamos nomeando as coisas e dizendo 'peraí, não é normal o que você está sentindo, você não precisa sentir isso no seu trabalho'.
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