'Saio do armário 24 horas', diz autora de livro sobre dupla maternidade
Maíra Donnici, 39, é jornalista, fundadora da empresa Ser + Inclusiva, que oferece consultoria e letramento para empresas que querem deixar o quadro de funcionários mais diverso, e autora do livro "Duas Mães e uma Filha", publicado de forma independente, no qual fala sobre os desafios de sua gravidez sendo casada com outra mulher.
"As pessoas me veem de aliança e preciso sair do armário 24 horas por dia. Me perguntam do pai, do marido. Se baseiam em estereótipos. Mas sou uma mulher que se perdoou por não estar dentro deles", conta com exclusividade a Universa.
Em nossa conversa, Maíra falou sobre preconceitos, se aceitar e como as perguntas e olhares durante sua gestação a fizeram se sentir uma extraterrestre.
Universa: Escrever o livro foi como um desabafo?
Maíra Donnici: Foi como revisitar minha história. Tinha escrito esses textos para meu blog quando recebemos a notícia de que estávamos grávidas. Talvez eu não estivesse preparada para me sentir diferente. E o que eu sei fazer da vida? Me comunicar. Então comecei a escrever e me sentia melhor.
Tive um início de gravidez difícil, aí combinava com a minha mulher que ia escrever quando precisasse. Para mim era difícil porque ouvia certas perguntas e me sentia invadida, mas achava que precisava responder tudo. Com o tempo, também comecei a escrever sobre essas indiscrições. Há cinco anos, era ainda mais incomum vermos duas mulheres grávidas. Depois que o livro foi publicado, as pessoas começaram a ler e me conectei com vários desses leitores.
Nós crescemos, e ainda vivemos, sob um ótica heteronormativa muito forte, né?
Engraçado que fomos criadas dentro dessa norma, em uma sociedade que diz que meninas são namoradinhas de fulanos. Nunca questionei minha sexualidade, não tive oportunidade de viver outras experiências.
A primeira vez que me senti atraída por uma mulher já tinha 20 anos, trabalhava e estava me formando. Mas quando senti esse interesse, não me questionei. Só vivi o que tinha para viver.
O que senti foi mais uma pressão interna. Tinha muito preconceito comigo mesma. E existe também muito preconceito com a bissexualidade. Ouvia que era uma fase, que ia passar. Vivia uma vida dupla: quando estava com outra mulher era incrível, mas me lembro de algumas vezes entrar antes no restaurante para ver se tinha alguém conhecido. É muito opressor. Não é só sobre amor, é sobre poder ser.
Em qual momento você entende que o amor basta e o medo do julgamento se vai? Ele existe?
Tive o privilégio de fazer muita análise, mas para mim foi muito sofrido. Na relação que tenho com a minha mulher, uma tira o melhor da outra e esse livro é uma grande declaração de amor para ela, que assina três textos da publicação, na visão de mãe não gestante, mas que também sofreu com a pressão social.
Me chocava, durante a gravidez, as pessoas perguntarem quem era a mãe, a curiosidade sobre o doador, que é muito diferente de ser um genitor ou pai. A sociedade tem essa visão machista de que o homem não precisa fazer tanta coisa, pode não estar presente. Basta ceder o material genético.
Como foi o processo de gestação para vocês? Foi sofrido? Doloroso?
Tive que aceitar que não gostei de estar grávida. Me questionavam, diziam que eu tinha que estar plena. Mas eu não dormia direito, vomitava toda hora, me sentia estranha, as pessoas me faziam diversos questionamentos desagradáveis. Me sentia uma E.T..
Como alguém ia gostar de estar grávida daquele jeito? Eram muitas privações. A gente precisa se perdoar por ter esses sentimentos durante a gravidez.
Você dedica o livro à sua filha e sua mulher, e diz que sua filha é sua revolução. Por quê?
Antonia, minha filha, é minha maior revolução. Faço tudo por ela. Tanto que ela me chama de Leonça, uma mistura de leão com onça. Sei que não posso protegê-la de tudo, mas estamos sempre ocupando espaços como duas mães, duas mulheres que se amam e que são uma família. Não tem pai mesmo. Isso é uma revolução todos os dias.
Vi em seu Instagram que você escreveu: "Não basta sair do armário, temos que seguir saindo". O que quis dizer com isso?
Na gravidez, tinha vontade de gritar. Se vamos a um médico novo, e estamos em duas mulheres com uma filha, nós duas somos mães. Durante a gravidez tinha que ficar o tempo todo apresentando a minha mulher.
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Quero receberQueria usar uma camiseta escrito: 'Não existe mãe de verdade. Nós duas somos mães'. Aguentei opiniões, intrusões, me senti cansada e despreparada. Tem um capítulo do livro que eu falo sobre como me sentia uma grávida mutante por ser diferente, por andar de mão dada com outra mulher.
Quando você percebeu que dava para tornar essa suas dores e questionamentos do dia a dia em uma empresa, já que você é fundadora do "Ser + Inclusiva"?
Quando comecei a me conectar muito com as pessoas e enxergar as pressões sociais. Sou uma mulher cheia de privilégios, mas passei para o outro lado quando casei com outra mulher. Isso foi um gatilho para notar outras formas de opressão. Então fui estudar.
Trabalhava na Globo nessa época e comecei a participar do comitê de diversidade LGBT. Percebi que gostava disso, de ajudar as empresas a serem mais diversas usando a voz que tenho como jornalista. Então fiz pós-graduação em diversidade e especialização em ESG. Quando ficou maior que o meu trabalho como jornalista, pedi demissão e me dediquei à minha empresa.
Quais são as maiores adversidades que você encontra quando uma empresa te contrata para trabalhar a inclusão?
É fazer com que as lideranças se convençam de que precisam investir dinheiro em diversidade. Isso nunca é uma prioridade. As empresas sabem que precisam, mas não é o foco principal e, depois de muitas reuniões, geralmente vem um 'fica para o ano que vem, porque não temos orçamento agora'. Temos que convencer as pessoas que não é mimimi e que é obrigação de todos criar um ambiente criativo, produtivo e diverso.
As coisas estão, de fato, melhorando no mercado de trabalho? Eu vejo algumas empresas fazendo palestras e penso 'mas ainda estamos falando disso?'...
Sou uma pessoa positiva e acho que as ações têm reações. Sempre evoluímos aos poucos, mas mudanças assustam. Entendo quem não gosta de mudar. Pelo menos hoje as pessoas pensam melhor antes de falar e aquelas que acham que é 'mimimi' são as que têm medo da transformação.
Temos mais mecanismos para punição e isso faz com que role uma certa cerimônia na hora de falar quando pensamos em ambiente corporativo. É preciso entender que tem espaço para todo mundo. Ninguém vai tomar o lugar de ninguém.
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