'Do cabelo duro': expressões racistas para não usar mais no Carnaval

Eu era criança no final da década de 90 quando a música "Fricote", de Luiz Caldas, lançada uma década antes, ainda causava polêmica na Bahia. "Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear", era o início da música. A canção que quase inaugura uma era de ouro da Axé Music na Bahia traz no centro uma expressão racista, "nega do cabelo duro".

Luiz Caldas, é lógico, não estava só. Ele levava à canção uma expressão popular que, entre tantas, foi carnavalizada em sua obra.

Esse assunto não é desimportante. O Carnaval é uma das maiores indústrias deste país. Nele várias disputas simbólicas são realizadas em nome do consumo. Fazer chacota de uma identidade é uma forma de desvalorizar as pessoas que levam aquela identidade como parte indexicalizada de sua vida.

Sou de uma época em que sentidos de "aba reta", por exemplo, eram colados no estilo do "marginal". Chamamos isso de indexicalização. Isto é, alguns sentidos são colados ou identificados como "naturais" de alguns sujeitos que portam aquelas características.

Quando alguém diz "velha carola", imediatamente pensamos numa senhora católica de certa idade frequentando assiduamente uma igreja católica. Assim, expressões racistas no Carnaval são uma forma de indexicalizar sujeitos, de "colar" neles sentidos pejorativos ou negativos.

Músicas como as já citadas e outras ("olha a cabeleira do Zezé", por exemplo) revelam o apreço da indústria do Carnaval em mimetizar negativamente ou atacar e desvalorizar identidades que não são consideradas um padrão.

Tiririca cantava, por exemplo, "veja os cabelo dela", e dizia "essa nega fede, fede de lascar". Luiz Caldas, como já referido, começa sua carreira com a "nega do cabelo duro". Bell Marques e o Chiclete com Banana, por sua vez, sempre falaram de cabelo em suas músicas ("Meu cabelo duro é assim, de pixaim").

Todos esses movimentos revelam o racismo recreativo no Carnaval de rua. Esse racismo linguístico pode ser tipificado como racismo recreativo e agora pode levar a uma pena de 2 a 5 anos, segundo a Lei 14.532/2023, sancionada pelo presidente Lula.

Uma coisa importante a saber sobre expressões racistas no Carnaval é que negros não são uma piada e nem um órgão sexual. As pessoas negras curtem, trabalham e sustentam o Carnaval de rua do país. Sendo uma festa de origem europeia, aqui ela ganhou a cor local da resistência afrodiaspórica e se perpetuou enquanto tal.

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Pra que a gente repense algumas posturas neste Carnaval de 2024, separei aqui algumas expressões que sempre chamam a nossa atenção nestas épocas festivas:

Nega Maluca

Um dos hits que imortalizaram essa expressão, e também personagem, e a indexicalizaram no texto-discurso do racismo foi a música "Nega Maluca", do extinto grupo Harmonia do Samba. Na letra, "Nega, maluca, solteira, tarada" é um refrão perverso que busca comprometer as mulheres pretas com atitude a uma adjetivação pejorativa: "maluca".

Particularmente, o termo "nega" em si é um ponto a se entender. Em 2010/2011 eu escrevia justamente sobre os diversos usos de "nego" e "nega" no Brasil. Em artigo assinado com Maria D'Ajuda Alomba Ribeiro, defendíamos que esse uso será racista de acordo com a distância do interlocutor que faz uso dessa expressão. Um exemplo conciso disso é que pessoas negras fazem uso desse termo entre seus pares ("oi, nega, Silvano tá aí?").

Os próprios termos atualmente vistos como pejorativos pelos movimentos negros ("moreno" é um desses casos) podem ser ressignificados. O Ilê Ayiê, tradicional bloco negro do Carnaval baiano, recrimina o uso da palavra "moreno" nos versos. "Se você tá a fim de ofender, é só chamá-la de moreno pode crer, é desrespeito à raça, é alienação, aqui no Ilê Ayiê a preferência é ser chamado de negão".

Apesar dessa disputa, Assis Valente, grande compositor da cultura popular baiana, escrevia há muitas décadas a música "Fez Bobagem", em que uma mulher iniciava "meu moreno fez bobagem".

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É inegável que as populações negras preferem termos sem arrodeio. O problema é que a palavra "maluca" expõe a tragédia do racismo/ sexismo contra mulheres altamente sexualizadas e descritas como loucas por seu jeito independente.

Foveiro

A palavra "foveiro/a" é utilizada no Carnaval da Bahia já faz um tempinho. Ela chegou a ser ressignificada de maneira amistosa com quem se identifica com esses jovens, mas é uma expressão inegavelmente racista.

É uma forma de nomear jovens de periferia que vão atrás de blocos de artistas do pagodão baiano, como La Fúria, o Kannalha e Psirico. Chamar de "foveiro" é a mesma coisa de chamar de "favelado". Porém, em carnavais do Rio e de outras capitais, é possível que essa expressão seja substituída por "favelado".

Essa expressão é racista porque indexicaliza, isto é, "cola" de forma negativa o sentido negativo em determinadas pessoas, em sua maioria pessoas negras, numa periferia sociorracialmente negra. Ou seja, em que pese haja pessoas brancas na periferia, o conceito de periferia no país é atribuído sociorracialmente como de "lugar de gente de cor" ou "para gente de cor". Foi assim que, no pós-escravidão, esse lugar foi arquitetado por uma colonialidade das elites escravagistas que, antes dominantes no sistema de dominação do trabalho escravo, se perpetuaram como dominantes também simbolicamente.

Tribufu

A palavra Tribufu, provavelmente pela harmonização vocálica que traz, é uma palavra que nasce de uma das raízes africanas que habitam nosso Pretuguês. Chamo de Pretuguês, baseado na antropóloga Lélia González, as influências africanas no nosso português, entre elas palavras como "samba", "cacunda" ou "dengo", entre muitíssimos usos.

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Porém, não se trata de palavra com sentido bom. Ela originalmente vem sendo utilizada para adjetivar mulheres pretas como feias. É surreal que uma palavra africana, ou de origem africana, seja usada para adjetivações ou substantivações negativas, mas isso é bastante comum no Brasil e na América Latina. Vejamos o caso de "fuzuê", aqui no Brasil e "quilombo", e em alguns países hispano-falantes da América do Sul, que são palavras associadas a bagunça.

Mavambo

A palavra "mavambo" é um verbete originado de línguas africanas. Seu uso no Carnaval se dá em blocos com muita presença gay, como o Coruja ou o Crocodilo, no Carnaval de Salvador. Essa palavra se refere a homens bastante pretos que se tornam símbolos sexuais na mentalidade racista do mundo gay heteronormativo que, com idealização do tamanho do pênis desses homens, reduz suas identidades a meros órgãos sexuais.

*Gabriel Nascimento é linguista e escritor brasileiro, tendo publicado livros como "Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo". É professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

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