Pré-Carnaval na 'quebrada' tem abadás, rainha e presença 'estranha' da PM
Gilvan Marques
Colaboração para Splash, em São Paulo
05/02/2024 04h00
Como é a folia na "quebrada"? A periferia de São Paulo curtiu o pré-Carnaval com os desfiles de bloquinhos pelas comunidades locais. Se não tinha a força e os patrocínios de um Ibirapuera lotado cantando 'La Belle de Jour" com Alceu Valença, ou o glamour do Acadêmicos do Baixo Augusta da musa Alessandra Negrini, não faltaram improvisação, solidariedade, um minitrio elétrico e muita diversão. Tinha até rei e rainha para animar a folia.
Neste domingo (4), o UOL visitou dois desses blocos em lugares mais afastados do Centro. Eles desfilaram pelos bairros do Capão Redondo e do Jardim Ângela, ambos na zona sul. Nos anos 1990 e 2000, as localidades ficaram conhecidas pelo nome de "Triângulo da Morte", por serem duas das três regiões mais violentas da capital. O outro bairro era o Jardim São Luiz. Juntos, os três chegaram a responder por 14,5% dos homicídios.
O que aconteceu
A reportagem acompanhou de perto os blocos Eco Campos Pholia e Bêbados & Nojentos. O Eco Campos Pholia foi fundado há mais de uma década com a proposta de debater questões sociais e a sustentabilidade. Já o Bêbados & Nojentos, que desfilou pela primeira vez, foi criado por amigos, por meio de um grupo no WhatsApp.
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Os blocos ocorreram sem tumulto, mas sob o olhar atento da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana. No Capão Redondo havia pelo menos seis viaturas, e no Jardim Ângela, quatro, além de uma base comunitária móvel e agente com armamento pesado.
Muita gente estranhou tantos policiais por ali em pleno domingo. "É estranho", resumiu Raquel Pereira Almeida, de 41 anos, gerente de projetos, ao falar sobre a presença dos militares.
Não temos o costume de vê-los por aqui. Não é comum. Sabemos que a polícia não é bem vista na periferia, mas hoje, por ser uma festa, nos sentimos mais seguros Dênis Santana Almeida, 42, consultor de informática
Flávio Cardoso, um dos fundadores do Bêbados & Nojentos, disse que a questão da criminalidade na região está presente. "Não temos como fugir. Não temos como 'mascarar'. Mas o período de Carnaval, da diversão, traz para a comunidade um certo momento de conforto e benefício social", avaliou.
Do próprio bolso
O UOL chegou ao Capão por volta das 12h10, para acompanhar o primeiro desfile do dia, o Eco Campos Pholia. O bloco tem como lema discutir a sustentabilidade. O responsável pelo projeto se chama Marcos Campos, 46, que trabalha com reciclagem.
Sem apoio financeiro de patrocinadores ou do poder público, Campos precisou tirar do próprio bolso para conseguir colocar o bloco na avenida. Ele gastou R$ 11.200.
Colocar um bloco na rua movimenta o comércio local, faz a economia circular dentro da própria comunidade, traz o lado social do Carnaval, completa a cultura, arte e a humanização através desses eventos. Através da cultura, a gente conseguiu mudar a nossa realidade Marcos Campos
Aos poucos, as pessoas foram chegando já vestidas com o abadá do bloco. O bloquinho tocou marchinhas de sucesso e, durante o desfile pela avenida, moradores se deixaram contagiar. Do alto de suas janelas e lajes, alguns dançaram; outros improvisaram e acenaram para aqueles que estavam no desfile. Ninguém parece se incomodar com o barulho do som.
A cada casa ou boteco que o trio passava, a rainha do bloco, Yara Trindade, convidava as pessoas para sambarem juntas. "É disso que estamos falando. Quanta gente tem talento na quebrada e não tem dinheiro para ir a uma avenida [sambódromo] ou um bloco?!", disse ela, apontando para uma senhora que demonstra ter samba no pé.
Folia em viela
A poucos quilômetros dali, outro bloco desfilava pela primeira vez: o Bêbados & Nojentos, no Jardim Ângela. Os amigos Jeferson Lopes, Douglas Mendes, Geovani Santana e Flávio Cardoso decidiram criar o bloco para o Carnaval deste ano, por meio de um grupo de WhatsApp. Correram atrás da Prefeitura, se cadastraram, e pediram autorização para o cortejo. Gastaram cerca de R$ 5 mil para colocar o projeto em andamento.
E deu certo: neste domingo, uma multidão lotou a viela da comunidade. Havia samba, música e bateria (de peso!).
Um carro com som arrastava os foliões pelas ruas, mas a música parou de repente no meio da ladeira. As pessoas improvisaram e seguiram cantando no gogó mesmo. "Bebeu água? Não! Tá com sede? Tô! Olha, olha, olha, olha a água mineral."
O Carnaval não é só para se fazer uma festa, é para ter um benefício social. Então esse foi o nosso primeiro cortejo de muitos que virão. Não só de folia ou bebedeira. Queremos fazer algo que ajude a nossa comunidade Geovani Santana, diretor do Bêbados & Nojentos
Não é porque somos pobres, que não somos seres humanos e não podemos nos divertir. Trazer os blocos para cá é importante para mostrar que a periferia não é apenas tragédia. A gente não é só isso. Alana Gabriele, cozinheira escolar, moradora do Jardim Ângela
Muita polícia
Nos dois blocos, as autoridades estiveram presentes. No caso do Capão, haviam agentes da Polícia Militar, da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e da GCM (Guarda Civil Metropolitana). Cerca de 12 trabalhadores da Prefeitura fizeram a limpeza das ruas. Não havia banheiro químico e, segundo integrantes, foram eles quem compraram e distribuíram a água para os foliões.
Já no Jardim Ângela, haviam PMs (em carros, motos e base comunitária móvel) e agentes da CET. Cerca de seis banheiros químicos foram colocados pela Prefeitura. Também haviam varredores para a limpeza urbana.
Em nota enviada ao UOL, a Secretaria de Segurança Pública informou que "o policiamento preventivo é constantemente reorientado, com base no registro das ocorrências, que mapeiam as áreas com maior incidência criminal e denúncias da população". Segundo a SSP, são 15 mil policiais a mais nas ruas para atuar exclusivamente nos eventos relacionados ao Carnaval.