Escravizados e nobres unidos sob proteção de Baco: qual origem do Carnaval
Do UOL, em São Paulo
08/02/2024 04h00
O Carnaval é uma festa milenar. Como qualquer festividade com tanta longevidade, é claro que ele já se transformou e reinventou inúmeras vezes ao longo dos anos, com novas formas de folia e algumas curiosidades. Conheça mais sobre a festa que anima o país todos os anos — desde sua origem até o "misterioso" cálculo da data.
Festa religiosa
Pode não parecer, mas o Carnaval tem raízes profundas no cristianismo. Ele foi concebido como um feriado para preservar tradições e suavizar o período da quaresma, conhecido por ser uma época de reflexão e abstinência, sempre iniciando 40 dias antes da Páscoa.
Historiadores sugerem que a festividade pode ter tido origem no antigo Egito ou na Europa medieval, como um tipo de ritual agrícola onde os agricultores rogavam por boas colheitas. No entanto, foi no contexto do Império Romano que o Carnaval se desenvolveu. Essas celebrações, conhecidas como Saturnálias, em honra ao deus Saturno, ocorriam nos meses de novembro e dezembro.
Durante as Saturnálias, tanto nobres quanto escravizados se misturavam nas ruas para festejar, desfrutando de comida abundante, bebida, música e dança, sob a proteção de Baco, o deus do vinho. Tais festividades evocam lembranças de um certo evento contemporâneo, não é mesmo?
Com o declínio do Império Romano e a ascensão da Igreja Católica, a tradição carnavalesca quase desapareceu. Para acomodar os novos fiéis, a igreja optou por manter a festa, desde que deslocada para antes da quaresma e rebatizada como "Carnevale", do latim "adeus à carne".
Por isso, a data do Carnaval é móvel, variando de acordo com a Páscoa, que é sempre no primeiro domingo após a primeira lua cheia após o equinócio de primavera no Hemisfério Norte.
O Carnaval no Brasil e sua evolução global
Embora seja uma celebração global, o Carnaval encontrou seu lar e se tornou um espetáculo popular no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Mas como isso aconteceu?
O Carnaval já era celebrado em Portugal nos séculos XV e XVI, conhecido como "entrudo". Quando os portugueses começaram a colonizar o Brasil nos séculos XVII e XVIII, essa tradição se enraizou aqui. Originalmente, o Carnaval/entrudo envolvia brincadeiras de rua, como jogar água, limões perfumados, farinha e até lama, fezes ou lixo uns nos outros. Felizmente, essa prática foi proibida em 1841.
No início do século XIX, a festa começou a evoluir significativamente com influências da corte portuguesa. Os "ranchos", desfiles de carruagens enfeitadas com pessoas mascaradas e fantasias, importadas geralmente de Paris, tornaram-se populares. Em seguida, os bailes de carnaval em clubes requintados se tornaram uma tradição entre a elite. Nas camadas mais pobres, persistia a tradição do entrudo, que gradualmente desapareceu no início do século XX.
A popularização da festa e sua transformação
Com o tempo, clubes e locais mais acessíveis passaram a sediar seus próprios bailes de carnaval, marcando o surgimento de sociedades carnavalescas e cordões, precursoras das escolas de samba. Em 1886, por exemplo, surgiu o Cordão Estrela da Aurora, oferecendo uma alternativa popular e acessível aos grandes bailes da elite.
Foi nos primeiros anos da República que o Carnaval começou a adquirir a forma que conhecemos hoje. Foi nesse período que os desfiles de ranchos, máscaras e fantasias em carros alegóricos se popularizaram no Rio de Janeiro. O samba foi oficialmente reconhecido em 1916 e a primeira escola de samba, "Deixa Falar", foi fundada em 1928. O primeiro concurso de escolas de samba ocorreu em 1932, com a Mangueira como campeã. A Praça Onze, no bairro do Estácio, tornou-se um dos principais locais de celebração.
Mesmo o presidente Getúlio Vargas, mostrando interesse na cultura popular, decidiu reconhecer o Carnaval e promover sua estruturação. Desde então, a festa evoluiu para se tornar o Carnaval típico do Rio de Janeiro, reconhecido internacionalmente.
O Carnaval pelo Brasil
O Carnaval brasileiro é conhecido mundialmente pelos desfiles grandiosos das escolas de samba do Rio de Janeiro, mas é muito mais do que isso. Em São Paulo, os desfiles têm ganhado destaque, assim como os blocos de rua, que se tornaram populares nos últimos anos.
Na Bahia, o Carnaval é famoso pelos trios elétricos, criados por Dodô e Osmar em 1950. Grupos de afoxé também são tradicionais, com o primeiro grupo, Embaixada Africana, surgindo em 1885. A tradição continua com pessoas vestidas em trajes africanos, cantando e dançando durante todo o Carnaval.
No Nordeste, diversas festas mantêm suas tradições, como em Natal, Maceió, Olinda e Recife, com ritmos como maracatu e frevo. Os "bonecões de Olinda" são famosos em todo o país.
Curiosidades sobre o Carnaval
Poucos sabem, mas tocar samba já foi motivo para ser preso no Brasil. Ser sambista era considerado sinônimo de ser "vadio" e, por extensão, "bandido". O pioneiro sambista João da Baiana, por exemplo, enfrentou problemas frequentes com a polícia enquanto carregava seu pandeiro pelas ruas do Rio de Janeiro.
Em uma ocasião, João foi abordado por policiais que apreenderam seu pandeiro, considerado uma prova de sua suposta "vadiagem". Isso o impediu de participar de uma roda de samba. O senador Pinheiro Machado, admirador do ritmo, interveio e presenteou João com um novo pandeiro, que funcionou como um salvo-conduto contra a repressão policial.