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'Sobrevivendo no Inferno': álbum dos Racionais nasceu incomodando a polícia

Thales de Menezes

Colaboração para o UOL, em São Paulo

14/02/2024 04h00

O disco "Sobrevivendo no Inferno", que inspirou ala da Vai-Vai no desfile do Carnaval de 2024 e que incomodou delegados de polícia de São Paulo, rendendo uma nota de repúdio, é um dos marcos da música popular brasileira e já nasceu incomodando a polícia.

"Avise o IML, chegou o grande dia"

O quinto álbum do Racionais MC's, de 1997, extrapola o rap e o hip-hop. É composto de faixas gravadas com o mínimo possível de elementos, praticamente só as vozes em cima de uma batida econômica de bateria e teclado, o mínimo para dar liga às músicas.

O álbum é essencial na cultura brasileira porque dá voz ao canto periférico, no caso dos bairros mais afastados e menos privilegiados de São Paulo, e faz isso de dentro para fora, sem filtros. Nenhuma grande gravadora deu seu aval, não foi impulsionado por um sucesso circunstancial de uma ou outra música. É um manifesto, uma pedra de fundação do rap nacional.

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Por que um disco conseguiu incomodar tanto a polícia, as instituições políticas e a igreja? Porque, por trás de sua simplicidade estética, o álbum deu vazão a um sentimento de revolta. E tudo está na força das letras.

O disco começa com uma regravação de "Jorge da Capadócia", de Jorge Ben Jor, que é seguida por 11 faixas originais do grupo. São polaroides do cotidiano da periferia —violência, miséria, racismo e desigualdade social estão expostos. Mas o que realmente bateu pesado em autoridades policiais e políticas foi "Diário de um Detento".

O foco da música é o massacre de 111 presos no presídio do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, numa ação da Polícia Militar. Anos depois, Mano Brown começou a visitar a Casa se Detenção em busca de inspiração para suas letras. Foi então que conheceu Josemir Prado, conhecido na prisão como Jocenir, "o tiozinho que escrevia".

Ele teve sua condenação, por receptação, aos 44 anos. Escrevia poemas e diários, o que o fez ganhar popularidade no cárcere. Passou a ser procurado pelos outros detentos para redigir mensagens a familiares ou cartas para a Justiça, como petições e pedidos de revisão de penas.

Embora não estivesse preso quando o massacre do Carandiru aconteceu, ele teve contato direto com inúmeros sobreviventes, chegando a dividir celas com alguns. Mano Brown ficou impressionado com os relatos escritos e pediu emprestado o material a Jocenir. Este então aparece como coautor de "Diário de um Detento", uma descrição crua das entranhas da violência policial.

A letra é explícita ao reconstituir a manhã do dia do massacre: "Traficantes, homicidas, estelionatários/ E uma maioria de moleque primário/ Era a brecha que o sistema queria/ Avise o IML, chegou o grande dia/ Depende do sim ou não de um só homem/ Que prefere ser neutro pelo telefone".

A mensagem é explícita ao então governador paulista, Luiz Antônio Fleury Filho (PMDB): "Ra-tá-tá-tá, caviar e champanhe/ Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe/ Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo/ Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio".

O sucesso da faixa, num álbum que vendeu meio milhão de cópias (sem contar muitas vezes esse número em versões piratas), era visto como provocação por alguns policiais militares. É notório que os shows dos Racionais passaram a ter constantemente uma presença maior de viaturas, mas ninguém tinha certeza se o intuito era ficar atento a possíveis incidentes ou simplesmente intimidar o grupo.

Depois de cumprir pena, Jocenir chegou a subir nos palcos com os Racionais. Ele morreu em 2021, aos 71 anos.

Além das forças policiais, "Sobrevivendo no Inferno" teve um impacto forte em várias vertentes evangélicas. O disco é a primeira incursão dos Racionais a textos bíblicos, notadamente duas faixas assinadas por Mano Brown "Capítulo 4, Versículo 3" e "Genesis".

O disco chega a ser estruturado como uma liturgia, como um texto para acompanhar um culto. Os vocais podem ser ouvidos como a condução de um pastor, numa sucessão de faixas que vai da leitura do Gênesis a trechos que seriam referência a testemunhos de fiéis.

Essa apropriação do culto provocou reações distintas. Aproximou o som do Racionais junto a muitas comunidades evangélicas, aumentando a penetração do trabalho do quarteto, mas também foi criticado duramente por outros grupos religiosos.

A capa do disco foi criada como uma clara declaração de intenções. Sobre fundo negro estão o título do álbum, uma cruz e uma citação bíblica: "Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça. Salmo 23, cap. 3".

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