Direito de Resposta: SP tem muita coisa, é fato, mas às vezes falta humor
A cena é uma daquelas que, de tão surreais, de cara já se adivinha o DDD. Dois ônibus estão emparelhados, enquanto os motoristas discutem fervorosamente. No auge da briga, um quebra o vidro traseiro do outro, e ambos seguem viagem para um desfecho que jamais saberemos qual foi. O sujeito que filmava o imbróglio então se vira para o céu pintado num degradê entre o amarelo e o vermelho típico de um fim de tarde no Rio de Janeiro. O narrador suspira e vaticina, com o mais carregado dos sotaques cariocas: "olha esse visual, São Paulo não tem isso".
Foi o suficiente para esse vídeo viralizar há uns anos e essa frase virar bordão no meu grupo de amigos. Além de serem meus amigos, todos têm em comum o fato de que são cariocas que moram ou moraram em São Paulo. Meu caso, aliás, que acabo de completar 5 anos como moradora da cidade, para onde me mudei por livre e espontânea vontade e onde escolhi me endividar por 35 anos num financiamento imobiliário.
Quando Felipe, um dos maiores companheiros dos meus 15 Carnavais do Rio, estava em conexão entre Berlim e o Brasil para viver sua primeira folia carioca desde o fim da pandemia, teve um estalo. "Vou fazer o estandarte 'São Paulo não tem isso', foda-se", disse ele a mim, entre um voo e outro.
Por minha vez, fiz o que bons amigos fazem: botei pilha. No dia seguinte, após uma visitinha ao Saara (a 25 de Março do outro lado da Dutra), estava pronto o estandarte em tons de preto e neon que tanto flanou, foi tietado, divertiu e até causou cizânia neste Carnaval — chamando atenção da imprensa, ganhando rápidas releituras, e até intrigando minha amiga colunista de Splash Luciana Bugni, que considerou nossa brincadeira de mau gosto, perguntando o que seria o "isso".
Antes de respondê-la, cabe aqui um lembrete, que julgo ser pertinente dadas as reações de Luciana e de muitos paulistanos que invadiram meu perfil no Instagram, revoltados: Carnaval é sátira, é a festa da galhofa, do humor e de um tiquinho de politicamente incorreto, sim. É claro que, como tudo na vida (menos na família Bolsonaro), as coisas evoluem. A apropriação cultural, o racismo, a misoginia e a homofobia cantada em marchinhas e sambas-enredo de outrora já não têm vez na festa. Ainda bem.
Mas piadocas inocentes com a suposta rivalidade entre Rio e São Paulo são mais do que cabíveis na festa de Momo. Tanto quanto o glitter, o confete, a serpentina e agora o latão de Xeque Mate. Estão na alma dela. E o carioca é, por definição, um fanfarrão. Do prefeito, Eduardo Paes, aos ambulantes e catadores de latas que nos paravam para tirar fotos segurando o estandarte, zoar paulista (sic) é um passatempo ancestral daqueles que nascem e crescem na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
É claro que sempre tem um ou outro que ultrapassa os limites do aceitável e transforma a brincadeira em agressão. E é mais do que óbvio que nenhuma das pessoas envolvidas com o estandarte da discórdia acha isso razoável: mas isso aconteceria com ou sem a existência de tal pavilhão. Como bem disse a escritora e roteirista Renata Corrêa, "o Carnaval não pode ser domesticado. A zoeira é maior, tem que ser. E a rua é o choque de realidades! No Carnaval sai tudo de dentro, é força libidinal, humana, é politicamente incorreto, é tempo suspenso fora da norma".
No mais, o "isso" a que o estandarte se refere, Lu, pode ser esse visual, a praia, o tipo de Carnaval que eu e meus amigos gostamos de pular, ou mesmo senso de humor para lidar com uma pilha inocente. Do meu lado, torço para que o Carnaval de São Paulo, autoproclamado maior do Brasil, prospere, siga crescendo e cresça muito. Assim, quem sabe, os blocos do Rio não ficam um pouquinho mais vazios ;)
Liv Brandão é carioca carnavalesca e fanfarrona que paga IPTU em São Paulo
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