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Racismo e mobilidade: um resgate histórico para refletir a segregação

Colunista do UOL

14/07/2020 04h00

Se nos voltarmos para história da construção das cidades brasileiras podemos observar os reflexos de um mecanismo colonial, que mesmo pós-colonização opera a todo vapor na manutenção das desigualdades sociais e raciais.

Esse mesmo mecanismo ficou conhecido em outros países como Apartheid, que nada mais é que uma política de segregação racial desenvolvida na África do Sul no século XX e que logo após se espalhou por outros países, sobretudo na Europa e América do Norte.

O Apartheid tinha como objetivo restringir o acesso de negros a recursos, espaços e cargos de prestígio no pós-abolição. Assim, mantinha o poder centralizado nas mãos da hegemonia branca, e os negros na subserviência ou na inexistência, já que o genocídio sempre operou junto a todo sistemas discriminatórios pautados na supremacia racial.

No Brasil, a ilusão da democracia racial com a ideia de um "pais de todas as cores e raças, onde somos todos iguais" sustentou por muito tempo o funcionamento do racismo estrutural, não permitindo que muitos de nós gerasse de forma imediatas reflexões críticas sobre determinados formatos, regras, comportamentos da estrutura, mesmo que nos causasse um sentimento de incomodo frente às injustiças.

Assim, crescemos acreditando que diferente dos outros países o Brasil não teve Apartheid, no entanto se aprofundarmos nosso olhar crítico sobre os processos históricos e a construção das cidades, perceberemos rapidamente que a segregação sócio espacial e racial/Apartheid, sempre se fez presente como mecanismo fundamental da engrenagem racista de monopolização de poder.

Após a abolição de 1888, com o grande contingente de negros libertos migrando para os centros urbanos, a elite política euro-descendente logo buscou criar mecanismo de reforma urbanística. Ao contrário do real sentido de "reforma urbana", que tem por intuito democratizar e readequar as cidades de modo a gerar acesso a todas as camadas sócias, a reforma aqui se concentrou no seu projeto de gentrificação, que expurgou dos centros urbanos a população negra, para assim recepcionar novos imigrantes europeus para o trabalho nas indústrias e lançando os afrodescendentes à própria sorte.

Essa população racialmente segregada foi obrigada a ocupar as periferias, quilombos, loteamentos, zonas rurais e outros territórios isolados. A negação dos territórios negros no Brasil comunga, na centralização dos recursos nas grandes metrópoles e nos centros urbanos, quem tem maiores investimentos em infraestrutura, escolaridade, saúde, concentração de renda e etc, beneficiando diretamente seus moradores locais que proporcionalmente são de maioria branca. Por outro lado, os territórios não urbanos sofrem com ausências de subsídios e com as péssimas condições dos recursos presentes.

Com isso, até os dias atuais, negras e negros, não-negras e não-negros, pobres, residentes de territórios às margens são obrigados a se deslocar cotidianamente para trabalhar nos grandes centros, servindo a estrutura e/ou até mesmo para se servir de recursos básicos que também estão monopolizados nestes espaços, como bancos, escolas, universidades, espaços de lazer e etc.

Essa viagem no tempo para resgatar acontecimentos históricos e atuais em suas configurações nos permite entrelaçar e refletir de forma crítica o modus operandi do racismo frente à construção das cidades e da mobilidade, em suas projeções segregacionistas.

Compreender o outro lado da história é fundamental para expandirmos nosso conhecimento e atuação frente às lutas contra a desigualdade e o racismo no Brasil. É importante para não reduzimos a complexidade do acesso às oportunidades, ao "mérito", e cair no engodo histórica ao que Chimamanda Ngozi chamaria o "perigo da história única".

Essa reflexão é também um convite para repensarmos e ampliarmos a agenda em torno da discussão da mobilidade e das lutas antirracistas. O direito à cidade é acesso a recursos que abre caminhos na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.