Pedestres periféricos: veículos orgânicos que disputam rua com carros
Para a periferia, desde início da pandemia, ficar em casa sempre foi inviável. Trabalhar para garantir necessidades básicas, como se alimentar e até mesmo ter uma casa para ficar, significa custos. O alimento, assim como o aluguel, tem um custo. Quem paga a conta? Dentre várias preocupações e demandas, homens e mulheres de baixa renda (na sua maioria pessoas pretas) não puderam deixar o fluxo de trabalho. Muito pelo contrário, com as readaptações, essas trabalhadoras e esses trabalhadores foram, ainda mais, oneradas e onerados.
Mesmo com a reabertura dos comércios, as ruas ficaram mais desertas e espaços privados lotados, o que é obviamente fora da lógica dentro de uma pandemia. Mas, se não há garantias assistenciais básicas, a segurança pública, quase nunca presente e nada protetora, ficou pior. Quem trabalha convive com o medo e a coragem de cada dia.
O dólar deu um salto enorme. O salário mínimo é um absurdo. O custo de vida está altíssimo. A periferia segue na jornada dupla, entre um serviço e outro, para tentar pagar as contas. É preciso toda uma engenharia do tipo, pegar um, dois, três ônibus, alternados entre metrô e longas caminhadas, para economizar a passagem.
Quem usa bicicleta enfrenta outra babilônia: bike não integra com ônibus, não tem ciclofaixa, muito menos ciclovia. A iluminação pública é precária, além as velhas e ainda atuais desestruturas. Para uma significativa parcela da população brasileira, direito à cidadania tem sido uma coisa, no máximo, imaginária. Nossas vidas estão se acostumando a conviver com a própria sorte.
Ser pedestre é ter que se entender com o que tenho chamado de "veículo orgânico". Somos portadores de um corpo pulsante, dotado de energia vital que se conduz pelo espaço. Parece ser uma bela descrição, se não fosse a desumanização do trânsito e da estrutura capitalista que nos trata como máquinas a ponto de naturalizar a disputa de corpos ativos com veículos automotivos.
As ruas mal têm meio fio, buracos no caminho, poste, lata de lixo, onde carros, caminhões e ônibus estacionados disputam com pedestres o passeio e, por isso, nossos corpos são postos em risco no enfrentamento da rua.
Nas faixas de pedestre se aguarda debaixo de chuva ou sol escaldante, o bom senso ou o mínimo de empatia dos motoristas de automóveis, que quase nunca vem. É preciso de fato de muita educação de trânsito neste país, que não fique restrito às escolas primárias. Tem que revisar tudo na autoescola, por favor.
Agora se pergunte: quais avanços têm contemplado pedestres nos últimos anos? As passarelas? Aquelas que lembram labirintos para hamster, com tantos vai e vens que fatigam nossa matéria. Parecem nos fazer desperdiçar longos minutos de vida passando por uma estrutura alta de metal e cimento olhando o privilégio, a miséria e o empobrecimento da cidade cimentada lá de cima, pouco verde pouca vida.
Depois de transitar tanto para chegar ao trabalho, passando os dez minutos de tolerância para bater o ponto, desconto, com acúmulo de atrasos pequenos de quem muitas vezes sai 2h,3h,4h... horas antes de casa para enfrentar o mesmo percurso desgastante todos os dias e ainda ter que receber registrado e documentado no contracheque grandes descontos que é retrato da sua rotina de violências simbólicas. Tudo faz parte da lógica capitalista perversa e genocida, tudo interligado.
Pode parecer exagero para quem prefere ficar dentro da sua zona de conforto ou até para quem se exime e se acovarda em manifestar-se diante da estrutura capitalista e racista, naturalizar o sistema de exploração do capital e não refletir sobre suas intervenções no bem viver do povo preto na ordem coletiva é corrobora com o projeto do racismo estrutural, enfraqueça a estrutura, caminhe, observe sua realidades e as outras possíveis e não só as que estão ao seu redor, amplie sua visão.
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