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Para onde vai o dinheiro arrecadado com multas e qual o impacto da pandemia

Silva Junior/Folhapress
Imagem: Silva Junior/Folhapress

Colunista do UOL

15/07/2020 10h00

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Um dos reflexos da pandemia do novo coronavírus é a crise econômica, que vem afetando os cofres públicos brasileiros. Em razão disso, os estados pediram ajuda ao governo federal para lidar com as restrições orçamentárias que seguem avançando desde o início da pandemia.

Esse contexto desafiador levantou questionamentos sobre a origem da receita arrecadada anualmente pelos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). O dinheiro arrecadado com a cobrança de multas de trânsito faz parte dos déficits dos estados?

Uma vez que muitos órgãos de trânsito não estão enviando as notificações de autuação aos condutores em decorrência da Deliberação CONTRAN n° 186/2020, o dinheiro proveniente das multas de trânsito não está sendo arrecadado normalmente. Em alguma medida o país depende dessa arrecadação para manter sua estrutura?

Dinheiro das multas deve ser usado no trânsito

O dinheiro das multas de trânsito tem destino específico previsto em lei. Toda a arrecadação deve ser aplicada exclusivamente em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito (art. 320 do Código de Trânsito). Ou seja, os valores devem ser investidos na melhoria do tráfego e da segurança viária.

É importante lembrar que a finalidade primeira do sistema de trânsito não é punir os condutores, mas sim coibir as infrações. Nesse sentido, a aplicação de multas serve para reprimir os desvios ao volante, tendo também função pedagógica.

A questão é que, embora o objetivo seja coibir as infrações - e, em consequência, as mortes no trânsito -, o Poder Público conta com a arrecadação decorrente da cobrança de multas para o orçamento público anual. A cada ano, os entes federativos estimam um valor a ser arrecadado por cada fonte de receita (IPTU, ICMS, IPVA, multas etc.), prevendo, inclusive, setores onde a arrecadação será aplicada.

Indústria das multas de trânsito: mito ou realidade?

Embora o objetivo maior do CTB seja educar os usuários do trânsito para garantir a segurança nesse espaço, existe no imaginário popular suspeitas e até denúncias de que, em alguns casos, há o interesse em arrecadar com a cobrança de multas. Esse assunto é pauta já há muitos anos, e vez ou outra reacende.

Em janeiro deste ano, o Jornal Gente, da rádio Bandeirantes, discutiu a prática. Um repórter do programa, fingindo ser membro de uma prefeitura municipal de cidade paulista, conversa com uma empresa de radares sobre estratégias para garantir a ocorrência de infrações por excesso de velocidade. A empresa, que tem radares instalados em muitas cidades paulistas, afirma que a disposição estratégica dos equipamentos gera arrecadação para a prefeitura.

Segundo a empresa, a média de faturamento com as multas por radar é três vezes maior do que o custo para mantê-lo operando. A cidade de Limeira/SP é dada como exemplo pelo profissional, com arrecadação superior a R$ 1.000.000. Contudo, esse é um caso isolado, e não se pode afirmar categoricamente que a prática ocorre em todo o país.

O interesse em resolver a questão deu origem ao Projeto de Lei 9769/2018, que visa obrigar os órgãos de trânsito a divulgarem a receita das arrecadações com multas e o destino dos recursos. O PL está aguardando análise na Câmara.

Nesse cenário, a atuação dos motoristas é fundamental. Respeitar as leis de trânsito é primordial para diminuir o risco de autuações, e conhecer seus direitos enquanto cidadão e condutor é a chave para estar atento a possíveis autuações indevidas no trânsito

Estados enfrentam crise econômica grave

O ICMS representa a maior perda de arrecadação tributária na maioria dos estados brasileiros. Em Minas Gerais, por exemplo, o imposto representa 80% da receita tributária, e a previsão de perda em 2020 é de R$ 7,5 bilhões.

Em São Paulo, onde o imposto representou 84% da arrecadação de todo o estado em 2019, a perda pode ser de R$ 16 bilhões neste ano. O Rio de Janeiro prevê a perda de R$ 15 bilhões e o Rio Grande do Sul registrou perda de R$ 700 milhões em ICMS e IPVA.

A queda na arrecadação desses impostos também ocorreu no Paraná, que estimou a perda de R$ 3 bilhões. Lembrando que a cobrança de IPVA foi prorrogada em muitos estados no início do ano.

Arrecadação de multas também sofre queda

As multas de trânsito, embora sejam verbas vinculadas (destinadas para fins específicos), também são fonte de receita dos cofres públicos. E a crise atual também impactou essa arrecadação; em parte pela suspensão do envio de notificações aos condutores, mas também em decorrência da adoção de medidas governamentais, como o distanciamento social e a liberação temporária do rodízio em São Paulo, por exemplo.

A prefeitura de São Paulo, nesse sentido, teve uma baixa significativa na arrecadação com multas de trânsito nos meses de pandemia, comparando-se aos meses anteriores e ao mesmo período no ano anterior. Em janeiro e fevereiro de 2020, as receitas com multas previstas na legislação de trânsito ultrapassaram os 100 milhões por mês.

Já no terceiro mês de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia, os números baixaram para R$ 88 mi. Desde então, a prefeitura registra queda na arrecadação das multas, atingindo R$ 63 mi em abril e R$ 53 mi em maio. Nos mesmos meses do ano passado, março, abril e maio, as arrecadações com essas multas chegaram a R$ 100 mi, R$ 115 mi e R$ 111 mi na capital paulista, demonstrando a baixa deste ano.

Diante disso, o seguinte questionamento é inevitável: a perda na arrecadação das multas pode prejudicar o funcionamento das estruturas administrativas?

Uma nota técnica emitida pela Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI) revelou que os estados brasileiros já estavam em situação fiscal frágil antes da pandemia. Estima-se que a União utilizará mais de R$ 100 bilhões dos cofres públicos para ajudar os estados na recuperação das receitas afetadas.

Uma vez que a verba das multas deve retornar para o trânsito, as perdas nesse setor não deveriam representar ruptura em outros setores. Mas podem impactar nas ações de saúde contra a pandemia no futuro, se parte dos recursos provenientes das multas de trânsito forem utilizados para esse fim, conforme previsões do Projeto de Lei 1151/2020, em análise na Câmara.