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Motos fogem do Talibã para levar educação a jovens mulheres do Afeganistão

Biblioteca e escola Móvel, montada sobre um triciclo, foi criada pela Pen Path, para levar livros e aulas para áreas remotas do país - Reprodução
Biblioteca e escola Móvel, montada sobre um triciclo, foi criada pela Pen Path, para levar livros e aulas para áreas remotas do país
Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

09/07/2022 04h00

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Quase um ano após a tomada da capital do Afeganistão, Cabul, pelo Talibã, jovens entre 12 e 17 anos continuam privados do seu direito à educação. O grupo fundamentalista islâmico só reabriu as escolas de ensino fundamental e a maioria não é acolhedora para as meninas, sem professoras mulheres ou banheiros, relata Matiullah Wesa, 30 anos, fundador e presidente da Pen Path (Caminho da caneta, em português).

Matiullah criou a Pen Path, uma organização não-governamental, em 2009, que tem como objetivo garantir que toda menina e menino afegão receba educação adequada. "É um direito de todos", defende em entrevista feita por ligação de voz no WhatsApp, de sua casa em Spil Bondak, próximo à fronteira com o Paquistão.

Para levar livros, material escolar e aulas a crianças em todo Afeganistão, há anos, Matiullah e os voluntários da Pen Path percorrem o país em motocicletas e triciclos, transformados em bibliotecas móveis.

"Viajamos de motocicleta de casa em casa e de vila em vila por muitos anos. Incentivamos as pessoas a mandarem seus filhos para a escola e os convidamos para a paz. A Pen Path chegou a áreas montanhosas onde nenhum carro poderia ir e as estradas são péssimas", afirma ele.

Pen Path Motos Afeganistão - Reprodução - Reprodução
Voluntários em motos levam livros e material escolar a crianças em áreas remotas e destruídas pela guerra no Afeganistão
Imagem: Reprodução

Vida dedicada à educação

A paixão de Matiullah pelos livros e pelos estudos foi herdada do pai, Haji Muhammad Khan, um respeitado líder tribal no distrito de Maruf, em Kandahar. Khan criou escolas para garotas e garotas na vila de Merokhil, frequentadas por Matiullah e seus outros 10 filhos.

As escolas, porém, foram queimadas pelos guerrilheiros Talibã em 2004. "Apontaram armas para nossos professores, mandaram a gente fugir e queimaram as tendas da escola", relembra Matiullah Wesa.

"Choramos muito. Destruíram nossos sonhos", diz. Mas não foram suficientes para destruir a força de Matiullah e de seu irmão Attaullah para brigar pela reabertura das escolas fechadas pelo grupo fundamentalista islâmico e lutar pelo direito à educação.

Os irmãos, fundadores da Pen Path, nos últimos 13 anos, reabriram 100 dessas escolas em províncias como Kandahar, Zabul, Khost, Helmand e Herat, algumas em áreas sob controle do Talibã. Eles também pressionaram o governo a criar 46 escolas, durante esse período.

No Afeganistão, onde mais de 60% dos 3,7 milhões de crianças fora da escola são meninas, as bibliotecas móveis da Pen Path - que incluem livros sobre história, geografia e ficção infantil em pachto e dari, as línguas oficiais do país - continuam a ser a única fonte de conhecimento das garotas.

Porém, desde que o Talibã voltou ao poder, em agosto do ano passado, o trabalho de Matiullah e os 2400 voluntários da Pen Path - sendo 400 mulheres - ficou ainda mais desafiador.

Biblioteca móvel pen path afeganistão - Pen Path Volunteers - Pen Path Volunteers
No Afeganistão, onde 60% das 3,7 milhões de crianças sem escola são meninas, as bibliotecas móveis são a única fonte de conhecimento para muitas
Imagem: Pen Path Volunteers

O Talibã é conhecido por sua violência e discriminação contra as mulheres. Além de restrições a sua aparência e comportamento, o grupo proibiu a maioria das mulheres de receber mais do que a educação primária enquanto governava o país.

Novamente ao comando do país, o Talibã não permitiu a reabertura das escolas para meninas entre 12 e 17 anos. "Eles dizem que precisam de tempo para reabrir as escolas, mas, na verdade, não estão fazendo nada para reabri-las", acusa Matiullah.

Aulas secretas e escolas móveis

Para evitar que as meninas - e meninos - ficassem sem aulas, Matiullah transformou a antiga biblioteca, montada sobre um triciclo, em uma escola móvel. Instalou um painel solar no teto, para fornecer energia, e uma TV de tela plana para exibir horas e horas de aulas gravadas pela Pen Path.

Meninas afegãs - Pen Path Volunteers - Pen Path Volunteers
A ONG Pen Path tem atualmente 35 salas de aula secretas para garotas no Afeganistão
Imagem: Pen Path Volunteers

Desde maio, a escola móvel leva conhecimento a vilas, onde as salas de aula não reabriram, ou mesmo nunca existiram. Segundo dados da Human Rights Watch, apenas 41% das escolas no Afeganistão têm um edifício dedicado. E muitas delas não têm água potável e nem banheiros.

A organização também organizou 22 turmas online e criou 35 escolas secretas exclusivas para meninas, espalhadas nas províncias de Kandahar, Helmand, Ghazni e Zabul, no sudoeste do País.

As salas de aulas são montadas dentro de casas nas vilas e as professoras são todas mulheres. Só assim, afirma Matiullah, seus pais apoiam a iniciativa e permitem que suas filhas frequentem as aulas.

Mattiulah Wesa Pen Path - Reprodução - Reprodução
Matiullah Wesa, fundador da Pen Path, segura cartaz com os dizeres: "deixem as meninas afegãs estudarem"
Imagem: Reprodução

Aqui vale um parêntese. Embora 99% do povo afegão seja muçulmano, a maioria discorda da interpretação fundamentalista que o Talibã faz do Alcorão. Ainda assim, é uma sociedade conservadora, dividida em tribos e clãs, na qual as mulheres não têm muita voz.

"As meninas também têm o direito de estudar. Eles podem tentar impedir, mas não vão conseguir. Faremos de tudo para que as meninas e meninos afegãos tenham acesso à educação", garante Matiullah.

Ameaças e prisões

Durante todos esses anos de sofrimento e guerras, em uma incansável batalha pela educação no Afeganistão, Matiullah Wesa parece ter se tornado insensível às ameaças, principalmente do Talibã.

Preso por três vezes sem motivos, segundo ele, o cientista político, formado por uma universidade na Índia, adota uma postura pacífica e nunca pegou em armas.

Mattiulah Wesa - Pen Path - Pen Path
Mattiulah Wesa precisa buscar apoio dos líderes tribais e convencer as pessoas a levarem suas filhas às aulas
Imagem: Pen Path

"Prefiro sentar para conversar com os líderes tribais e os anciãos. Eles me apoiam e reconhecem que a educação é fundamental para termos um país melhor e mais pacífico. Também mantenho diálogo com o Talibã, para tentar reabrir as escolas, mas só para meninas. Dessa forma, eles concordam e os pais se sentem mais seguros", explica ele.

Apesar da coragem e convicção invejáveis, até mesmo Matiullah, por vezes, desanima. Após ser ameaçado recentemente, postou um desabafo em uma rede social, maneira utilizada por ele para angariar fundos para sua organização e chamar a atenção do mundo para o problema da educação no Afeganistão - e forma pela qual fiz o primeiro contato com o fundador da Pen Path.

"Eu estava desesperançoso. São anos e anos, muitos quilômetros rodados, sem férias, sem nada. É um trabalho incessante e cansativo", confessa.

Escola Móvel triciclo - Reprodução - Reprodução
A escola móvel leva livros e aulas para meninas e meninos afegãos: "damos aulas de manhã até o sol se por", conta Matiullah
Imagem: Reprodução

Para, na sequência, emendar: "Mas basta ver a felicidade com que as crianças nos recebem e o apoio que recebemos das pessoas em todo o Afeganistão, para retomar a fé de que o trabalho está valendo a pena. A educação é o único caminho para reconstruirmos nosso país", finaliza Matiullah, antes de se despedir para a oração do Salat Maghrib.