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Kelly Fernandes

Pressão das montadoras tenta adiar mudanças que farão você respirar melhor

Renato Stockler/Folhapress
Imagem: Renato Stockler/Folhapress

Colunista do UOL

07/08/2020 04h00

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Usar a crise sanitária em curso, assim como seus desdobramentos na sociedade e na economia, como motivo para mudanças pode servir a muitos propósitos, mais ou menos nobres. Desde março, representantes das indústrias do setor automotivo estão negociando com o governo o adiamento da adoção de limites mais rígidos de emissão de poluentes veiculares, usando como justificativa a pandemia do novo coronavírus.

Antes de prosseguir, é importante explicar que a poluição atmosférica pode ser percebida por meio da fumaça preta que sai de escapamentos, na fuligem que fixa na superfície dos móveis ou através de desconfortos respiratórios, que ocorrem com mais frequência quando a qualidade do ar é ruim.

Vários estudos relacionam a má qualidade do ar ao surgimento ou agravamento de doenças preexistentes. Pesquisa publicada pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, revelou que pacientes com Covid-19 que moram em áreas onde há altos índices de poluição têm o risco de morte pela doença elevado em cerca de 15%.

Em reconhecimento ao papel que as emissões veiculares têm para a piora da qualidade do ar, o Brasil criou o Proconve (Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores), com o objetivo de reduzir a emissão de poluentes atmosféricos e ruídos emitidos pela frota veicular.

O programa foi elaborado com a pretensão de estimular uma mudança gradual, que atinge veículos produzidos no país e importados. Atualmente estamos na fase Proconve P7, equivalente ao Euro V, que, em resumo, são normas que visam a redução de poluentes de veículos movidos a diesel.

No Brasil, o diesel é o combustível utilizado por veículos pesados: ônibus e caminhões. Eles são responsáveis por cerca de 90% das emissões de material particulado ultrafino (PM2.5), que pousa na superfície dos móveis, mas também em nossos pulmões, além de outros poluentes que ocasionam em milhares de mortes anuais.

Portanto, adiamentos na adoção de padrões mais sustentáveis, como o solicitado pela Anfavea (Associação Nacional de Fabricante de Veículos Automotores), prorrogam também o prazo para a população respirar um ar mais limpo e compromete a capacidade de redução da mortalidade de doenças como a causada pelo novo coronavírus

Em 2018, após intensos debates que envolveram sociedade civil, poder público e empresas do setor automotivo, foi estipulado um prazo para a adoção de um novo padrão de emissões - menos poluente -, Proconve P8, equivalente ao Euro VI. As discussões aconteceram no Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). Quem ganhou a "queda de braço" foram as indústrias, que propuseram o prazo mais longo: 2022/2023. É este acordo que empresas do setor automotivo querem adiar em três anos.

Para entender melhor o que isso significa, os Estados Unidos adotam o padrão equivalente ao Euro VI desde 2010, ou seja há mais de dez anos. A Europa desde 2014. Ou seja, estamos atrasados, mesmo quando comparamos o Brasil com países mais próximos, territorialmente ou da nossa realidade, tais como o Chile, o México ou a Índia. A Índia, por exemplo, adotou o padrão Euro VI em abril de 2020, mesmo durante o enfrentamento da pandemia e mediante a adoção de distanciamento social obrigatório (lockdown).

Tem sido pautado ainda pelo setor a retirada de veículos antigos de circulação através de programas de renovação de frota. Sobre isso, Carmen Araújo, diretora executiva do ICCT Brasil (The International Council on Clean Transportation Brazil) reforça que qualquer programa com essa finalidade deve ter como objetivo garantir que os benefícios para a sociedade excedam os custos.

"Não faz sentido discutir programas de renovação de frota combinados com retrocesso na regulação ambiental. Principalmente sabendo que a atual fase do Proconve se mostrou ineficiente no controle das emissões em condições reais de tráfego, somando-se ainda a fraudes verificadas na utilização do agente redutor Arla", disse Araújo.

A título de curiosidade, Arla (Agente Redutor Líquido Automotivo) é um reagente que ajuda na redução da emissão do percentual de óxidos de nitrogênio, presentes nos escapamentos e que causam danos à saúde.

Outro argumento utilizado por representantes do setor automotivo é que a mudança para o padrão P-8 acarretaria no aumento dos custos de aquisição de novos veículos pesados. No entanto, especialistas indicam que os custos para investimento em novas tecnologias são mínimos quando comparados aos custos sociais.

De acordo com Camila Acosta, do ISS (Instituto Saúde e Sustentabilidade), "a proposta da sociedade civil era implementar o padrão Euro VI em 2020, mas pela pressão da indústria só foi aprovado para início em 2023", segundo relatório do ISS, em seis regiões metropolitanas brasileiras, esse atraso de 3 anos "custará a vida de 10 mil brasileiros e 10 mil internações hospitalares, públicas e privadas, estimadas, respectivamente, pela perda de R$ 4,6 bi e R$ 36 mi".

O jogo de força que era possível quando o prazo para a adoção do novo padrão (P-8) foi firmado, ficou comprometido com o encerramento das atividades da Comissão de Acompanhamento e Avaliação do PROCONVE, instituída em 2009. Segundo David Tsai, geógrafo do IEMA (Instituto de Energia e Meio Ambiente), "andamos na contramão nos últimos dois anos, com a extinção da Comissão, um espaço onde a indústria, o governo e a sociedade podiam discutir a eficácia, eficiência, andamento e novas fases do programa".

Logo, antes de colocar o adiamento na conta na pandemia, os impactos da prorrogação e flexibilização dos prazos para a adoção dos novos parâmetros precisam ser amplamente discutidos com a sociedade. Um debate tão importante, que impactará a vida de quem vive em cidades a médio e longo prazos, não pode ser capturado por apenas um setor da sociedade ou discutido nos bastidores da política, ainda mais sem levar em conta todos os desdobramentos.