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Kelly Fernandes

Não foi acidente: impunidade no trânsito é favorecida no Brasil

Reprodução/TV Globo
Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

13/11/2020 04h00

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Enquanto tomava café da manhã junto à janela no final do mês de setembro, ouvi uma vizinha conversando com uma amiga na calçada. O assunto era sobre as eleições municipais. "Voto no candidato que prometer tirar todas as ciclovias da cidade", disse uma delas.

Olhei para fora, queria dar um rosto para a voz estridente e constatei que era uma mulher idosa, certamente com mais de 70 anos. Oito semanas depois, choro a morte de Marina Harkot, assassinada aos 28 anos enquanto voltava de bicicleta para casa. A nós foi negado o direito de um encontro cotidiano na calçada.

É comum que motoristas se incomodem em dividir o espaço viário com pessoas que caminham e pedalam, queixando-se do tempo dos semáforos, dos considerados excessos de fiscalização, das restrições de velocidade ou da presença de lombadas.

As queixas são mais numerosas quando se trata da divisão ou compartilhamento do espaço físico das vias com a infraestrutura cicloviária - ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas - ou dos alargamentos e extensões de calçadas a partir da retirada de estacionamentos e estreitamento de faixas de rolamento.

Transformamos as ruas das cidades em trincheiras de guerra quando dirigir automóveis particulares é percebido como direito, adquirido através da emissão de um documento, que atesta a capacidade de um indivíduo conduzir ou pilotar um veículo. Documento, esse, que muitas vezes é tomado como certidão de posse das ruas. As configurações das vias urbanas não contestam essa percepção autoritária, uma vez que suas dimensões, somadas aos altos limites de velocidades, são medidas pensadas para garantir a fluidez veicular.

Segundo, Odir Züge Jr, doutor e especialista em questões cicloviárias, a permissão para dirigir , diferentemente do direito de ir e vir previsto na Constituição Federal de 1988, pode ser retirada a qualquer momento.

"Dirigir é uma permissão precária, que é dada a partir de certa idade, mediante a realização de procedimentos específicos e que podem ser retirada de forma administrativa em caso de descumprimento de regras previamente estabelecidas", diz o especialista enquanto aponta a falta de objetividade do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) sobre esse aspecto.

Penas para quem pratica homicídio na direção de veículo automotor estão previstas no CTB e no Código Penal. Homicídios culposos - quando não há intenção de matar - , causados por imprudência, negligência ou imperícia no trânsito, estão previstos no CTB.

Já os homicídios dolosos - quando há intenção ou o risco de matar é assumido , por exemplo quando há a ingestão de bebidas alcoólicas ou substância psicoativa antes de dirigir -, está previsto no Código Penal e possui implicações mais graves enquanto o "homicídio culposo no Brasil tem uma pena leve, e a qualquer momento essa pena pode ser transformada em prestação de serviços", explica Züge. Além disso, acrescenta, existem discordâncias entre juristas nas definições que caracterizam se um homicídio de trânsito é doloso ou culposo.

Em entrevista, respondendo sobre como outros países tratam do tema, Züge relata que "na Holanda, existe a responsabilidade objetiva, que independe da existência de intenção ou não. Por exemplo, um motorista que atropela um pedestre é sempre o culpado, não importam as circunstâncias, isso faz com que o motorista holandês dirija com muito mais cuidado do que o motorista brasileiro."

Isso porque, no Brasil, o comportamento de pedestres e ciclistas é sempre questionado. Em situações de fatalidade no trânsito, nas redes sociais e na imprensa circulam perguntas, como: "o pedestres estava na faixa?", "pedalava pela ciclovia?", "em que horário aconteceu?" etc, o que pode induzir julgamentos.

É importante lembrar que falhas na infraestrutura podem servir como atenuante - ou seja, álibi -, e minimizar punições. Por exemplo, ausência de iluminação ou falta de visibilidade podem funcionar como " a desculpa que o réu quer para se eximir da culpa", diz Züge.

Mas onde começa e termina a responsabilidade do Estado sobre mortes no trânsito? Afinal, não é só sobre punição, e sim sobre prevenção e educação para o trânsito, destaca Amanda Carneiro, advogada, ciclista e integrante do GT Gênero da Associação dos ciclistas urbanos de São Paulo (Ciclocidade).

No Brasil faltam mecanismo para a responsabilização perante a omissão do poder público no cumprimento de determinações previstas em políticas públicas e leis. Quem conhece as cidades brasileiras sabe que a infraestrutura precária para pedestres e ciclistas é regra. Igualmente, quem conhece o comportamento de quem dirige veículos no país, sabe que más condutas no trânsito seguem o mesmo princípio.

Nos vácuos da confusão entre direito e permissão para dirigir, da impunidade no trânsito e da negligência do Estado, a epidemia de mortes no trânsito avança. Só nas duas últimas duas semanas, ao menos outros dois jovens ciclistas além de Marina Harkot foram vítimas de ocorrências Fatais em São Paulo, Joab Xavier e Lucas. E Amanda Rocha, morta aos 21 anos na última terça-feira (10/11/), no Distrito Federal. O Brasil é o quarto país com maior índice de fatalidades no trânsito.

Com a proximidade das eleições, talvez você esteja tendo conversas como a que descrevi no início da coluna com seus amigos, familiares ou com desconhecidos que encontra pelo caminho. Mas espero que você não escolha a violência como motivação para apertar as teclas da urna no domingo, seja ela evidente, seja camuflada em discursos de retrocesso que defendem a retirada de ciclovias e/ou que prometem combater a denominada indústria da multa, aumentando os limites de velocidade e retirando dispositivos de fiscalização.

Ao apertar "confirma", pense bem se não estará contribuindo para transformar nossas ruas em trincheiras de guerra e para interromper o futuro de alguém.