Saída da Ford do Brasil deveria impulsionar mobilidade sustentável no país
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Momentos de crise como a saída da Ford do Brasil - multinacional estadunidense fabricante de automóveis presente no país desde 1919 -, podem constituir possibilidades de desvios de trajetória. Um balanço realista entre a quantidade de recursos historicamente destinados ao setor automobilístico e os avanços sociais e econômicos promovidos, que pese também os impactos negativos, provavelmente demonstraria que, ao final de tantas décadas, ficamos no prejuízo.
O Brasil, desde os primórdios do processo de industrialização nacional nos anos 1930, destinou um espaço especial para a indústria automotiva no orçamento, nas políticas e nos espaços públicos, ampliado sobretudo durante a gestão de Juscelino Kubitschek, presidente do país entre 1956 e 1961.
Poderes econômicos e políticos nacionais apostaram em um destino econômico movido sobre motores e rodas por meio das quais pessoas, bens e mercadorias passaram a circular de norte a sul e de leste a oeste, em ruas e rodovias cercadas por mecânicas, lojas de autopeças, postos de gasolina, estacionamentos etc.
Antes da consolidação desse cenário, foi preciso tirar espaço de algum lugar, por exemplo de áreas verdes, florestas e calçadas, passando por cima de tudo o que poderia representar qualquer "entrave" ao desenvolvimento do modelo rodoviarista.
Depois, foi preciso garantir mercados sólidos e atrativos para as empresas estrangeiras instalarem plantas industriais no Brasil, o que ocorreu por meio do boicote do transporte aquaviário e do desmonte do sistema de transporte sobre trilhos (como trens e bondes), a serem substituídos por automóveis, caminhões e ônibus.
Outro ingrediente para essa receita desenvolvimentista não desandar foi a garantia de mão de obra abundante e barata para colocar em movimento essa frágil engrenagem, valendo-se de pessoas que deixaram para trás familiares, amizades e vizinhança e, muitas vezes, suas próprias vidas para atravessar o país na tentativa de ocupar um dos postos de emprego que haviam chegado ao seu conhecimento por meio do rádio ou de cartas de familiares que anunciavam as possibilidades de uma vida melhor em cidades como São Paulo, berço da indústria automobilística brasileira.
A nova aposta também moldou o desenvolvimento urbano da capital paulista: acelerado, fragmentado e desigual, esse modelo afastou as pessoas com menos condições financeiras, muitas delas trabalhadoras do setor, e intensificou distâncias físicas e sociais.
Com o tempo, esse padrão de desenvolvimento aumentou os custos desembolsados para as indústrias manterem a localização de suas plantas industriais, assim como os custos com mão de obra, que se qualificava e conscientizava cada vez mais, não só produtivamente, mas politicamente. Além disso, esse crescimento passava a reivindicar melhores condições de trabalho e salariais.
As desvantagens locacionais crescentes e presentes também em outros municípios do estado de São Paulo induziram mudanças de endereço, ocasionando na desconcentração produtiva das indústrias automobilísticas, o que também foi impulsionado pela ação do Estado, por exemplo através da atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), que estabeleceram incentivos fiscais para montadoras de veículos individuais de passeio instalarem-se nas regiões Nordeste, Norte e Centro-oeste (com exceção do Distrito Federal).
Como resultado, a Ford instalou uma montadora no estado da Bahia, que saiu vitorioso na guerra travada com o Rio Grande Sul, após a criação de um regime fiscal diferenciado na região que destina ainda hoje créditos presumidos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), no percentual de 32% para as montadoras.
Lembrando ser esse apenas um dos benefícios que o Governo Federal historicamente destinou ao fomento da indústria automobilística no país, o qual é somado às isenções tributárias e aos incentivos fiscais que, muitas vezes, acumularam-se a outros benefícios municipais e estaduais em plena guerra fiscal.
Como contrapartida, a perda arrecadatória precisa ser traduzida pelas indústrias em mais vagas de emprego, além de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica. No entanto, com o passar dos anos, os investimentos realizados pelo poder público no máximo expressaram-se na melhoria da usabilidade dos veículos e raramente em desenvolvimento social ou redução dos impactos ambientais causados pela indústria automotiva, com destaque para a piora da qualidade do ar, com a qual o setor tem colaborado ativamente por frear melhorias tecnológicas.
O saldo negativo revela a necessidade urgente da construção de uma nova trajetória - não tão nova assim -, que passa por repensar prioridades quando o assunto quando o assunto é sobre investimentos públicos, retirando-os gradativamente da indústria automobilística a fim de redistribuí-los para a expansão e qualificação da infraestrutura voltada a modos ativos, preparando espaços para serem percorridos a pé e/ou de bicicleta, e também investindo no transporte público coletivo e nas infraestruturas logísticas. Portanto, deixando de financiar a "infraestrutura cinza" e passando a investir nas "infraestruturas verdes", isto é, na mobilidade sustentável.
Só assim será possível reverter perdas sociais, ambientais e econômicas deixadas pela indústria automobilística, tais como os 5 mil empregos diretos que desaparecerão em Camaçari (BA), Horizonte (CE) e Taubaté (SP) e, ao mesmo tempo, liquidar o saldo deixado pelo setor de cidades entupidas de veículos - tão obstruídas quanto o sistema respiratório e circulatório das pessoas que residem em grandes cidades -, e perdas logísticas crescentes quando o assunto é a circulação de bens e mercadorias, fazendo com que o Brasil deixe de ser um repositório de tecnologia veicular obsoleta dos países centrais, enquanto esses aos poucos apontam para dias mais verdes e menos cinzas.
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