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Kelly Fernandes

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Quais os limites para uso de reconhecimento facial no transporte

ViaQuatro foi multada por coletar dados de passageiros de maneira indevida - Reprodução/ViaQuatro
ViaQuatro foi multada por coletar dados de passageiros de maneira indevida Imagem: Reprodução/ViaQuatro

Colunista do UOL

14/05/2021 04h00

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Em mais um dia da sua rotina diária, você está na escada rolante descendo até o mezanino, onde há outras escadas que podem te levar para lados opostos da cidade, porém a escada utilizada é sempre a mesma. Já na plataforma correta, agora é só aguardar a chegada do metrô.

Enquanto isso, você pega o celular para conferir o horário e, ao retornar o olhar para a frente, a propaganda nas portas automáticas te faz lembrar da última viagem para a praia. Você sorri. A partir desse momento suas emoções viram dados que serão utilizados para aumentar as chances de convencer você e milhares de pessoas a adquirem pacotes de viagem.

A situação hipotética, mas bastante comum, pode explicar o último capítulo do conflito gerado pelo uso de tecnologias de reconhecimento facial no transporte público coletivo para fins de coleta de dados como idade, gênero e as emoções das pessoas que utilizam a Linha 4 (Amarela) do Metrô, em São Paulo, operada pela ViaQuatro.

O uso inapropriado e pouco transparente da tecnologia motivou a realização de uma Ação Civil Pública (ACP) contra a concessionária. A ação foi construída de forma colaborativa por entidades da sociedade civil, tais como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Instituto Alana, o Instituto Iris, o Lavits, a Access Now e o Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Sistemas de Informação da Faculdade de Direito da USP.

Na última segunda-feira (10), o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou a ViaQuatro pelo uso indevido da tecnologia para coleta de dados sem autorização prévia, a qual deverá pagar a quantia de R$ 100 mil por danos morais coletivos.

A quantia será destinada ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, criado em 1988 com o intuito de reunir e gerir recursos oriundos de multas e condenações judiciais e danos ao consumidor que podem ser utilizados em benefício de projetos de interesse social. O valor da indenização é apenas 10% do valor solicitado pelas entidades autoras da ação dada a gravidade do dano gerado à sociedade.

A decisão do TJSP confirma a decisão tomada em 2018, ano em que foi movida a ACP responsável por determinar a suspensão da coleta de dados. Entre o intervalo que separou a implantação do sistema da decisão judicial, inúmeras informações pessoais de quem utiliza a linha amarela foram coletadas sem prévia autorização, o que, segundo declarações do Idec, configura como uma prática abusiva, visto que o transporte público é um serviço essencial e, ao não concordar com a coleta de dados, as pessoas não pode simplesmente optar por outro serviços, como quando optamos por deixar de usar um aplicativo que coleta mais informações do que gostaríamos de fornecer.

É importante destacar que a ação judicial é a primeira do tipo no Brasil, abrindo um importante precedente para a discussão do uso de tecnologias de reconhecimento facial em estações, terminais, vagões e veículos do transporte público coletivo.

O desfecho deixa o claro lembrete de que as leis precisam ser cumpridas em qualquer instância, tanto para prevenir os casos relacionados com uso inadequado de informações pessoais para fins de exploração publicitária, quanto para proteger a sociedade de qualquer uso dessa tecnologia com finalidade não prevista e que acarrete em danos para as pessoas que frequentam ambientes de uso público.

Dentre as implicações do uso de tecnologias de reconhecimento facial em ambientes do transporte público coletivo estão o alto potencial discriminatório da tecnologia, principalmente quando se trata de pessoas negras, transexuais e mulheres, que podem ser impedidas de passar por uma catraca, punidas injustamente ou ser vítimas de perseguição.

Segundo informações retiradas do guia "Reconhecimento Facial e o Setor Privado, realizado pelo Idec e InternetLab, "o uso e criação de sistemas de reconhecimento facial (assim como de qualquer inteligência artificial) geralmente reproduzirá discriminações sistêmicas em seus resultados: seja por vieses decorrentes da base de dados, seja pela seleção e construção do modelo, seja pelas próprias finalidades do sistema".

Entre as ações que o guia aponta como mitigatórios, isto é, medidas antidiscriminatórias, constam o treinamento dos algoritmos de reconhecimento facial, utilizando uma base de dados com diversidade racial, de gênero e etária; treinamento ativo profissionais responsáveis pelas operações finais da tecnologia, teste e auditorias técnicas independentes.

Ou seja, são práticas que requerem participação social e transparência, ainda mais em tempos em que o interesse privado é sobreposto ao interesse público com tanta virulência, muitas vezes utilizando como justificativa a criação de receitas alternativas para garantir aquilo que há tempos já é previsto em lei.