Travessias urbanas: vantagem para carros, desvantagem para pedestres
Entre alguns significados da palavra travessia de acordo com o dicionário Oxford está: "ação ou efeito de atravessar uma região, um continente, um mar etc.". Nas cidades, atravessar é uma ação cotidiana que realizamos quando necessitamos passar por uma barreira física que interrompe ou impossibilita a continuidade de um trajeto.
Por exemplo, cotidianamente atravessamos linhas férreas, rodovias e até mesmo rios. Mas também pode se tratar de uma simples travessia de uma rua, entre uma calçada e outra, em que a barreira é o fluxo intenso de veículos.
Um outro significado atribuído pelo dicionário à palavra travessia é relacionado a um "caminho longo e ermo". Muitas vezes, as travessias elevadas e subterrâneas implicam em distâncias maiores para percorrer, ampliando significativamente o tempo de deslocamento de pedestres e ciclistas.
Não podemos esquecer que o aumento do tempo de deslocamento também impacta a realização de travessias em nível, uma vez que pedestres e ciclistas geralmente precisam aguardar um longo tempo para atravessar uma avenida em um curto tempo, pois a prioridade de circulação é dada aos veículos motorizados.
Travessias também podem criar uma sensação de insegurança. Só quem já usou uma passarela para atravessar uma linha férrea ou rodovia sabe o quão intermináveis podem ser meros 100 metros e o quão apavorante pode ser o meio do caminho em que você está longe demais do ponto de acesso e do ponto de chegada.
O medo fica ainda mais intenso quando os raios de sol vão embora e a cidade se revela escura e erma sob a iluminação pública, quando existente, ineficiente. Situação que torna esses espaços de circulação propícios a atos de violência, afastando pessoas que alternativamente optam por realizar as travessias por outros meios, mesmo que signifique colocar suas vidas em risco.
Exemplo disso são as travessias subterrâneas de Brasília. Em uma cidade construída para privilegiar o uso do automóvel, essas travessias são criadas para assegurar que o fluxo veicular não seja interrompido, praticamente desconsiderando outros meios de transporte.
Como desdobramento, é frequente avistar pedestres e ciclistas atravessando o fluxo veicular no nível da rua, entre os carros, para evitar as travessias subterrâneas e escuras, áreas de visão obstruída e pouca zeladoria. Segundo o portal Metrópoles a partir de dados da pesquisa recente do Instituto de Pesquisa e Estatísticas do DF (Ipe-DF), "na maioria das travessias subterrâneas da capital federal, os brasilienses presenciaram situações de insegurança como furto ou roubo (...) 65,3% dos entrevistados passaram por situações do tipo".
Refletir sobre travessias elevadas ou subterrâneas a partir da escala dos pedestres nos permite ir ainda mais longe no processo de reflexão, inclusive de maneira literal, já que é frequente pedestres terem como única opção percorrer longas distância dada a impossibilidade de transpor vias com fluxo veicular intenso, seja em passarelas subterrâneas, seja em passarelas elevadas.
Além disso, pessoas com deficiência (PCD) ou mobilidade reduzida podem encontrar obstáculos adicionais quando as passarelas não possuem rampas acessíveis, elevadores, piso tátil, dispositivos sonoros, etc, aumentando e intensificando situações de exclusão e isolamento social que vivenciam cotidianamente.
Na medida em que as travessias tiram pedestres e ciclistas do nível da rua, ou seja, da interação direta com áreas comerciais e de oferta de serviços, sua instalação enquanto solução de mobilidade pode impactar a economia local, reduzindo o dinamismo da circulação e descontinuando o fluxo de pessoas - motivadas ou não pelo consumo —, podendo induzir o declínio de áreas comerciais.
É preciso reconhecer que algumas situações urbanas podem exigir o uso de travessias para possibilitar a continuidade da circulação de pessoas e veículos - o que inclui a bicicleta. Porém, seu uso, por vezes, ocorre em benefícios da circulação e fluidez de veículos motorizados individuais, mesmo que em prejuízo de outros meios de transporte, o que inclui a circulação de ônibus que alguns casos têm sua circulação proibida em pontes e viadutos exclusivos para automóveis. Por isso, muitos veículos públicos e coletivos seguem presos no trânsito após investimentos milionários para construí-los.
Como mensagem final, argumento que, ao planejar cidades e infraestruturas urbanas, é essencial pensá-las a partir da escala de pedestres, isto é, a escala do nível da rua. Defendo, portanto, que devemos evitar soluções que desconectem as pessoas da cidade e, por sua vez, umas das outras. Como a própria semântica sugere, as travessias servem para superar desafios e unir extremos, e não para fragmentar ainda mais a vida urbana.
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