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Romi-Isetta ou DKW-Vemag Universal: afinal, qual é o 1º carro nacional?

Colunista do UOL

12/09/2020 07h00

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(SÃO PAULO) - Tal era o entusiasmo com a estreia do Romi-Isetta que o jornal O Globo se antecipou: "Rodará, amanhã, o primeiro automóvel popular nacional", destacou na véspera do evento.

"Lançado no mercado o primeiro carro nacional de marca 'Romi-Isetta'. Passo importante para a instalação de nossa indústria automobilística", anunciava o vespertino Folha da Noite naquele 5 de setembro de 1956, uma quarta-feira que marcou a apresentação do menor automóvel já visto no país.

Assim foi tratado o carro produzido pela Máquinas Agrícolas Romi (Indústrias Romi a partir de 1962), uma fabricante de tornos sediada em Santa Bárbara d'Oeste, no interior de São Paulo, que de repente dera um drible nas empresas automobilísticas instaladas no Brasil, até então apenas montadoras ou importadoras de veículos de passeio.

Em 19 de novembro de 1956, cento e quarenta e dois dias após o primeiro Romi-Isetta dar a partida em sua modesta linha de produção, nasceu o DKW-Vemag Universal, perua de descendência igualmente europeia.

Concebido pelo projetista de aviões Ermenegildo Pretti e revelado no Salão de Turim de 1953, o Isetta foi a aposta da italiana Iso - fabricante de scooters e pequenos caminhões - em um veículo acessível e econômico para uma Europa que se recuperava dos abalos causados pela Segunda Guerra Mundial. Após iniciativa e insistência de Américo Emílio Romi e seu enteado Carlos Chiti, vendera a licença de fabricação à empresa brasileira.

Carreata Romi-Isetta  - Fundação Romi - Centro de Documentação - Fundação Romi - Centro de Documentação
Carreata de lançamento do Romi-Isetta, em 5 de setembro de 1956
Imagem: Fundação Romi - Centro de Documentação

De início, era empurrado por um bicilíndrico de 236 cm3 e 9,6 cv até a velocidade máxima de 85 km/h. Em 1959 chegou o motor BMW, monocilíndrico, de 289 cm3 e 13 cv.

Já a DKW foi uma das marcas que formaram a Auto Union, conglomerado alemão constituído em 1932 que, sob controle da Volkswagen a partir de 1964, se converteu na Audi que conhecemos. E que aqui desembarcou - precisamente no bairro paulistano do Ipiranga - pela Vemag, empresa que importava, montava e comercializava caminhões da Kenworth e da Scania-Vabis, além de tratores da Massey-Ferguson e carros da Studebaker.

O modelo destinado ao mercado brasileiro remonta a 1939, quando os primeiros protótipos do DKW F 9 ficaram prontos. Tratar-se-ia de uma nova família de veículos, cujos principais apelos residiam na carroceria aerodinâmica lapidada por túnel de vento e no novo e econômico motor de três cilindros. Contudo, a eclosão da Segunda Guerra Mundial interrompeu o lançamento previsto para o ano seguinte.

DKW F89 - Divulgação  - Divulgação
DKW F 89
Imagem: Divulgação

Terminado o combate, a DKW assumiu protagonismo na retomada da Auto Union, mas sem um produto novo. O jeito foi repaginar o F 8 para lançá-lo como F 10 no início de 1950. Isso até que ficasse pronto no mesmo ano o F 89, um meio-termo que juntava o motor bicilíndrico do finado F 8 à carroceria do moderno F 9. Este, equipado com o três-cilindros como planejado lá em 1939, apareceu só no Salão de Frankfurt de 1953 como F 91, também conhecido como 3=6 Sonderklasse - os números sugeriam que a força dos três cilindros (896 cm3, 38 cv, 7 kgfm de torque) em ciclo de dois tempos equivaliam ao poder de um seis-cilindros de quatro tempos; a palavra alemã pode ser traduzida como "classe especial".

Só levo 2

No mesmo ano em que Romi-Isetta e DKW-Vemag Universal foram lançados, nasceu também o pivô da discórdia sobre quem é, afinal, o primeiro carro nacional: Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), órgão criado pelo então presidente Juscelino Kubitscheck para estimular e balizar a indústria automobilística brasileira.

Em 26 de fevereiro de 1957, o GEIA apresentou o decreto 41.018:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando das atribuições que lhe confere o artigo 87, inciso I, da Constituição e de acôrdo com o art. 16 inciso a do Decreto nº 39.412, de 16 de junho 1956,

DECRETA:

Art. 1º Fica pelo presente Decreto instituído o Plano Nacional da Indústria Automobilística relativo a automóveis de passageiros.

Art. 2º Os atos executivos previstos no Decreto nº 39.412, de 16 de junho de 1956, quando aplicados à indústria nacional de automóveis de passageiros, serão subordinados ao disposto no presente Decreto, no que tange à fixação dos níveis de estímulos à respectiva atividade fabril e às exigências de realizações manufatureiras impostas aos beneficiários dêsses mesmos estímulos.

Art. 3º Consideram-se automóveis de passageiros, para os efeitos do presente decreto, os veículos de quatro rodas assim designados comercialmente, destinados ao transporte de pessoal, com capacidade normal para o mínimo de 4 e o máximo de 7 passageiros, inclusive o motorista.

Como nota-se, o Romi-Isetta tinha capacidade para apenas dois ocupantes. Porém, com 72% de peças fabricadas localmente - apenas motor e câmbio eram importados da Itália -, ao menos atendia a um item que, considerada a intenção de nacionalizar a indústria, talvez tivesse mais valor do que a quantidade de passageiros transportados:

Art. 4º A produção nacional de automóveis de passageiros deverá atingir até as datas fixadas neste artigo, os seguintes níveis de realização, indicados como porcentagem ponderal das peças fabricadas no País:

1º de julho de 1957 - 50%.

1º de julho de 1958 - 65%.

1º de julho de 1959 - 85%.

1º de julho de 1960 - 95%.

O DKW-Vemag Universal tinha (inicialmente) 54% de seu peso composto por peças nacionais e comportava quatro passageiros. Estava plantada, então, a controvérsia. Talvez a mais calorosa quando o assunto é carro nacional.

DKW-Vemag Universal  - Divulgação  - Divulgação
DKW-Vemag Universal saindo da linha de produção no Ipiranga
Imagem: Divulgação

"É a maior lenda urbana da história automobilística do Brasil. Quando a Romi decidiu fabricar o carro, o GEIA ainda não existia. Ao GEIA não cabia homologar os automóveis. O foco era definir as diretrizes básicas referentes à implantação dessa indústria no Brasil. Para esse objetivo, emitiria documentos, em forma de decretos assinados pelo Presidente da República, concedendo estímulos aos interessados na produção de automóveis", pondera Eugenio Chiti, filho de Carlos Chiti, idealizador do Isetta brasileiro.

Ainda de acordo com Chiti, no segundo semestre de 1957 a Romi apresentou um plano de produção de carros que seriam feitos em joint-venture com a BMW, incrementando a linha de produtos com quatro modelos: duas picapes (uma com capacidade para 250 kg de carga e outra, 600 kg), um furgão e um Romi-BMW 600, equivalente ao que a marca bávara fazia na Alemanha.

"O plano foi imediatamente aprovado pelo GEIA, mas a BMW precisou desistir e a Romi, sem um parceiro tecnológico, decidiu focar na produção de máquinas", explica.

Se Chiti é suspeito na defesa do Romi-Isetta, jogamos a polêmica em um grupo de whatsapp de jornalistas automotivos, onde as opiniões se dividem:

"Qual a polêmica? Para circular com o Romi-Isetta era preciso emplacá-lo como automóvel, e não motociclo. E o GEIA não homologava, só definia as regras para a implantação da indústria, como índice mínimo de nacionalização", diz Luiz Guerrero, ex-Quatro Rodas e a Car & Driver.

"O GEIA nunca poderia dar incentivos para um carro de dois lugares. Em teoria, poderia beneficiar uma empresa que quisesse fabricar um carro esporte, de dois lugares. Mas não era esse o objetivo do governo. A história de uma porta só não era obstáculo. Mas sim levar apenas dois passageiros", analisa Fernando Calmon, da coluna Alta Roda, de UOL Carros.

"Foi safadeza da grossa do GEIA não incluir a Indústrias Romi no programa de incentivos, já que tinha poderes para alterar a especificação de mínimo de dois passageiros", rebate Bob Sharp.

A Federação Brasileira de Veículos Antigos não toma partido. Diz apenas que trata-se de um tema controverso e interpretativo e, na condição de entidade que representa diversos grupos, não pode emitir certas posições. Um diretor da FBVA (que pediu anonimato), no entanto, simplifica: "Automóvel, se tem uma ou duas portas, em qualquer lugar do mundo é um automóvel".

É mais ou menos como pensa José Antonio Penteado Vignoli: "acho que temos que separar a questão técnica que levou as autoridades da época (sem entrar em qualquer outro mérito) a não considerarem o Romi-Isetta como um automóvel e termos uma visão prática de que transportava passageiros como qualquer outro. Era um automóvel de fato, daí eu considerar como o primeiro. Os fatos vividos superam as questões técnicas neste olhar histórico", reflete.

O colecionador ainda acrescenta que "não podemos esquecer - apesar de não sabermos dos fatos - que as pressões econômicas e políticas sempre existiram e não deviam ser poucas num momento de atração do capital estrangeiro para o país. O fato de ter tido ou não o apoio do GEIA não apaga os fatos, a existência do Romi-Isetta, da linha de produção, das vendas, da manutenção. Ou seja, não foi um caso isolado ou experiência de poucos exemplares".

Para Marcos Rozen, curador do MIAU, "é uma discussão complexa, pois também houve alguns veículos nacionais produzidos antes da Romi-Isetta, porém de forma artesanal. Podemos dizer que a Romi-Isetta é o primeiro veículo nacional produzido em série".

DKW na veia

O jornalista Flavio Gomes é uma das referências quando se trata de DKW. E tem uma Universal raríssima, nada menos do que o décimo exemplar produzido, finalizado no dia 26 de novembro de 1956.

DKW-Vemag Universal do jornalista Flavio Gomes - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Flavio Gomes e seu DKW-Vemag Universal
Imagem: Arquivo pessoal

"Donos de DKW, como eu, vão dizer que o primeiro é a Universal. Porque existe um documento, uma definição de automóvel, um mínimo que um objeto deveria ter para ser considerado um automóvel: lugar para quatro passageiros e bagagem. E o Romi-Isetta não se enquadrava na categoria. O nome que davam para ele na época, não faço ideia", resume o também colecionador, que tem outros tantos DKWs na garagem.

"Esse tipo de dúvida, qual a categoria do Romi-Isetta, existe em outros países. Na Inglaterra, onde eram fabricados pela BMW, eles tinham três rodas, para se enquadrarem em outro regime tributário", relembra Gomes, com razão.

Para ele, um suposto reconhecimento de algum órgão oficial hoje não mudaria nada, na prática. Uma valorização dos carros, talvez? "Não sei se subiriam muito de preço. Porque elas já são valorizadas, porque hoje são raras. No da Universal, a mesma coisa. Primeiro porque sobraram quatro ou cinco unidades (de 173) das 1956. E não estão à venda, estão fora do mercado. Uma coisa oficial seria legal apenas para os defensores de cada causa", pondera.

DKW frente - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
DKW-Vemag Universal do jornalista Flavio Gomes
Imagem: Arquivo pessoal

No fim das contas, pode ser um debate de relevância relativa. "Ele é importante para os donos de Romi e de DKW. É uma discussão sem fim, e não acho que seja tão importante assim. Até porque a diferença de produção é de meses. Então, o que a gente pode dizer com certeza, sempre, é que a indústria automobilística brasileira começou em 1956. Pra agradar todo mundo", apazigua.

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