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Mora nos Clássicos

Flavio Gomes: montadoras são um "fracasso" por ignorarem museus no Brasil

Colunista do UOL

23/01/2021 07h00

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(SÃO PAULO) - Por volta de 2009, 2010, eu trabalhava numa produtora de vídeos vizinha a ESPN. Quando, às vezes, passava pela emissora no meu caminho entre o metrô Sumaré e a Plínio de Morais podia dizer se o Flavio Gomes, então apresentador do canal de esportes, estava lá. A dica era um Wartburg ou um Trabant estacionados na rua.

Além de um dos principais nomes do jornalismo esportivo há mais de 30 anos, Gomes também é conhecido por dois amores incondicionais: a Portuguesa e veículos antigos. Ele acaba de lançar uma série de vídeos no YouTube em que desvenda seus próprios clássicos, a começar por um DKW. Como não entendo de futebol, conversamos sobre...carros:

Quando e como começou sua relação com carros antigos? Quando tinha uns 9, 10 anos, lá pelos idos de 1973, 1974, morávamos no Rio e íamos com frequência a São Paulo. Quase sempre meu pai fazia uma parada em Caçapava e visitávamos o museu do Roberto Lee. Ali comecei a gostar dos antigos e meus primeiros carrinhos da Matchbox eram quase todos de época.

Em 1975 fizemos uma viagem para o Sul, de carro, e lá havia muitos DKWs. Meu pai, toda hora, dizia: "Olha lá, o papai teve um desses!". E aí comecei a me encantar com DKWs, a tal ponto que quando fiz 11 anos ganhei duas miniaturas da ATMA, um Belcar e uma Vemaguet, que meu pai comprou na Aerobrás, na rua Major Sertório, centro de São Paulo. Jurei que um dia teria aqueles carros de verdade. O Belcar era verde com a capota branca. A Vemaguet, bege. Tenho as duas miniaturas até hoje. E tenho os dois de verdade, também.

Quantos são hoje? Considerando meu carro mais novo, que já é antigo, são 38, mais três motos.

Como é usar carros antigos no dia a dia? Cada vez mais difícil, nas grandes cidades, porque o trânsito pesado acaba com eles. É um anda-e-para permanente, e esses carros não são feitos para isso. Alguns esquentam, outros ficam com os freios prejudicados, as ruas são esburacadas... Eu diria que até uns 15 anos atrás, mais ou menos, as coisas eram menos difíceis. Mesmo assim, quando estou em São Paulo, estou sempre com um antigo na rua, mesmo sabendo que eles podem, de repente, resolver parar em protesto pelos maus-tratos.

Do que é preciso abdicar para adotar esse estilo de vida e, em termos práticos, quais são as alegrias e os desafios? Alguém pode dizer que é preciso abrir mão do conforto, do ar-condicionado, do vidro elétrico, do monte de baboseiras que hoje vendem sobre quatro rodas dizendo que são carros - na verdade, as montadoras hoje vendem kits multimídia que andam, e me parecem caríssimos.

Eu, pessoalmente, não abdico de nada e desfruto do prazer de dirigir de verdade, de ter controle absoluto sobre o veículo que me carrega; de ouvir um motor, de passar uma marcha, de sentir o vento na cara, de estar numa verdadeira cápsula do tempo com toda sua história e as histórias vividas dentro dela; de andar numa máquina que, embora tenha 40, 50, 60 anos, funciona perfeitamente e representa o triunfo da tecnologia de uma época, o resultado do trabalho de operários, engenheiros e técnicos de todos os tipos que deixaram em cada parafuso, em cada projeto, em cada solução, seu suor e dedicação.

Recentemente, a FIVA (Fédération Internationale des Véhicules Anciens, a entidade máxima do antigomobilismo) afirmou que carros clássicos com motor elétrico não são mais históricos. Você concorda? Concordo. Algumas modificações técnicas em veículos realmente comprometem seu caráter histórico. Eu prezo muito pela originalidade. Alterar tanto a natureza de um carro, trocando seu coração-motor por outra forma de propulsão, equivale a reformar um castelo colocando fachada de vidro espelhado ou instalar cadeiras almofadadas no Coliseu. Um carro antigo movido a eletricidade não conta história nenhuma.

Teria um clássico movido a eletricidade para o dia a dia? Não. Nem um moderno. Não é algo que me seduz.

Você é reconhecido pelo gosto por carros do Leste Europeu. Salvo sua identificação política e social com a Alemanha Oriental e a antiga União Soviética, o que os Lada, Trabant e Wartburg têm de especial ao volante? Para começar, são produtos de países que não existem mais. Carros que realmente escreveram a história do dia a dia dessas nações, das pessoas que viveram nesses países num determinado período histórico. Que foram concebidos com objetivos muito claros com os recursos que esses países tinham à disposição em sua indústria. Só isso já é um prazer. No mais, são ótimos de dirigir, "conversam" com a gente com seus rangidos, barulhos, cheiros... Não tem nada igual.

O que dá tesão ao dirigir esses carros? Um pouco do que falei acima. Você se sente dirigindo, não sendo dirigido - parece slogan do brasão paulista, é meio brega, mas no fundo é isso. Você atua o tempo todo, sabe tudo que está acontecendo com ele só com dois ou três instrumentos e com seu ouvido, seu tato, sua sensibilidade. Além do mais, as pessoas sorriem quando veem esses carros passando. Fazer alguém sorrir, em tempos tão sombrios, já é mais do que se pode esperar de um automóvel.

Do que você sente mais falta quando o assunto é carro clássico no Brasil: mais eventos, mais museus, mais programas de TV, montadoras mais envolvidas com seu passado...? Acho que temos bons eventos, eles acontecem, ou aconteciam, antes da pandemia, o tempo todo em qualquer canto do país. Museus, não temos nada de muito especial. Havia o da Ulbra, aquilo foi um crime acabar. Hoje temos mais coleções fantásticas do que propriamente museus com grande significado. E as montadoras brasileiras são um fracasso, nisso. Todas deveriam ter os seus museus, suas coleções expostas, seu passado respeitado e reverenciado.

A indústria brasileira, considerando a Vemag como a primeira fábrica, já tem mais de 60 anos. É uma história rica, riquíssima, mas as montadoras ignoram isso e desprezam suas próprias trajetórias. Quanto à TV, bem, hoje temos o Youtube e tem bastante coisa sendo levada ao ar. Algumas boas, outras nem tanto, mas acho que atendem ao público. Procurando bem, se encontra muito conteúdo legal.

Um dos desafios no mundo dos clássicos atualmente é que boa parte dos colecionadores está envelhecendo e não há para quem deixar os legados físico e cultural. Ou seja, o movimento carece de novos colecionadores. Como, na sua opinião, isso poderia ser revertido para garantir a continuidade do antigomobilismo? Não sei. É evidente a mudança na relação entre os jovens e os automóveis nos últimos anos. Há um desinteresse crescente, e as novas gerações não se relacionam com os carros como as mais velhas. Carro hoje, para um jovem, é algo que pode ser pedido por aplicativo, como uma pizza, um pack de cervejas geladas, um namorado ou uma namorada. Mesmo os filhos dos colecionadores nem sempre se interessam por aquilo que seus pais têm na garagem. É um dilema, mesmo. Não tenho resposta para isso.

Seus filhos herdaram do pai o amor por carros antigos? Mais ou menos. Eles cresceram andando em carros antigos, então para eles chegar na escola de Trabant ou de Kombi era algo rotineiro. Nesse sentido, sempre curtiram. E nunca se sentiram discriminados porque o pai não tinha um carrão de último tipo. Eles têm, pelo menos, a noção de que a coleção do pai tem um valor histórico e uma importância indiscutível. E não pretendem se desfazer de nada. Têm os seus prediletos, curtem as maluquices do pai, estão acostumados, os antigos fazem parte da rotina deles.

Mundialmente, o antigomobilismo é liderado pelo arquétipo do patriarca - homem, branco e hétero -, que naturalmente domina também as demais esferas da existência humana. Você acredita que se houvesse maior presença de mulheres, gays e negros a cultura do veículo clássico o cenário seria outro? É um meio claramente conservador, reacionário, até. Já não faço mais parte de nenhum grupo de WhatsApp por causa disso. Tem muita gente com quem jamais teria qualquer relação se não fosse o gosto comum por determinada marca de carro. Sim, o cenário seria outro se o perfil básico do colecionador não fosse esse que você descreveu. Seria muito mais interessante e divertido. Mas o perfil é exatamente esse, com tudo de ruim que ele traz.

Os preços de carros antigos estão cada vez mais elevados, sobretudo quando se trata de clássicos nacionais. Como driblar certos parâmetros do mercado e entrar pro antigomobilsmo por uma porta mais acessível? É natural, carro antigo só valoriza. Então, o negócio é apostar nos chamados neo-clássicos, e a oferta é muito grande. Tem muita coisa legal dos anos 80 e 90 com preços bons por aí. O negócio é estabelecer um objetivo, escolher marca, modelo, ano, e sair atrás. Acaba achando, até porque nessas décadas a quantidade de carros produzidos foi muito maior do que nos anos 50, 60 e 70, por exemplo. E tem muita coisa boa dando sopa por aí.

Em qual país você viveria hoje se a meta de vida fosse viver o antigomobilimo em sua plenitude? Alemanha. Sou apaixonado pelos carros alemães, especialmente os DKWs e todos do Leste Europeu.

Qual o clássico os seus sonhos, aquele que ainda não está na sua garagem? Já me fizeram essa pergunta várias vezes e, provavelmente, nunca dei a mesma resposta. O que significa que não tem um só. Mas vamos lá. O carro dos meus sonhos desta semana é uma peruinha Trabant 1.1 com motor quatro tempos, das últimas séries fabricadas em Zwickau.