Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Real origem da Kombi vai além do rascunho de Ben Pon e respinga em Porsche
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(SÃO PAULO) - "Às vezes, a história considerada verdadeira requer uma reavaliação. No caso da Kombi, a história de que um holandês chamado Ben Pon teria sido o grande responsável pelo surgimento do veículo se perpetuou. Sem dúvida, ele teve participação no processo, mas a fabricação desse veículo sempre repousou em outras mãos. Durante um longo período, julgou-se apropriado omitir essa história; até agora, mais de uma geração depois, realidade e ficção se misturaram de tal forma que somente um desnudar radical do folclore pode revelar a verdade".
É com esse petardo que Richard Copping - historiador automotivo e ex-editor da VW Magazine - começa Volkswagen Transporter: a celebration of an automotive and cultural icon (Ed. Haynes, 2011). Nas 149 páginas do livro, além de dissecar as três primeiras gerações da van mais famosa do mundo o escritor inglês expõe detalhes do nascimento da Kombi.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a Stadt des KdF-Wagens ("cidade do KdF-Wagen" no idioma local, sendo KdF-Wagen o nome oficial do Fusca até o término do combate) foi entregue ao exército inglês, cuja missão era reorganizar a devastada região - e por conseguinte a fábrica da Volkswagen ali instalada - para oportunamente reconduzi-la ao povo alemão, o que aconteceria em outubro de 1949.
No comando da região agora chamada Wolfsburg - e automaticamente na liderança da Volkswagen - estava o major inglês Ivan Hirst (1916 - 2000), personagem crucial para a sobrevivência da fabricante alemã, marcada naquele momento pela transição da produção bélica sob domínio nazista (os idealizadores da fábrica e do carro do povo, afinal) para a manufatura civil sob custódia inglesa.
"Inicialmente, a fábrica era usada apenas como oficina de reparos para veículos militares. Hirst foi o primeiro a reconhecer as possibilidades oferecidas pelo estabelecimento da produção de veículos civis na área quase totalmente destruída", explica a Volkswagen ao relembrar o que ela mesma chama de "raízes britânicas".
Tido como hábil negociador, o jovem major foi pouco a pouco convencendo seus superiores a adiar o desmantelamento da fábrica. Até recebeu uma encomenda da administração militar britânica de 40.000 Fuscas, meses antes da produção para fins comerciais estrear, em 27 de dezembro de 1945.
Manter a montadora de pé parece ter virado sua obsessão. "A fábrica da Volkswagen tinha apenas uma pequena força de trabalho e o recrutamento de trabalhadores adicionais era um desafio adicional. Hirst foi pragmático e também ofereceu um emprego a prisioneiros de guerra alemães. Durante os primeiros anos, foi difícil obter suprimentos para a força de trabalho. Hirst improvisou e conseguiu organizar comida e outros itens por meio de seus contatos", acrescenta a empresa.
Tempos de tanto improviso que não havia sequer empilhadeiras disponíveis para o elementar transporte de peças dentro da fábrica.
Carro prancha
Para resolver a escassez de empilhadeiras, o major Hirst inventou o Plattenwagen: sobre o chassi de Fusca, uma chapa longitudinal (daí o "platten", que pode ser traduzido como prancha, placa ou simplesmente algo plano) instalada à frente do motorista e seus comandos.
Importador oficial da Volkswagen na Holanda, Ben Pon frequentemente viajava à Wolfsburg para negociar novas fornadas de Fusca. Numa das visitas, deu de cara com o Plattenwagen.
"Ben Pon divisou ali uma oportunidade de negócio inexplorada. Tão logo pôde, tentou obter um certificado de homologação para aquele veículo transitar pelas ruas da Holanda. Mas a licença foi negada pela autoridade de transportes holandesa por conta de uma regra que determinava que o motorista deveria se sentar na dianteira do veículo", revela Copping.
Pon então rabiscou seu famoso esboço, revelado a Hirst em um encontro no dia 23 de abril de 1947. No desenho, o holandês atendeu a exigência da Dutch Transport Authority e transferiu para a frente do veículo a posição do motorista e eventuais passageiros, mantendo o motor na traseira. Calculou que o vão entre as extremidades deveria comportar até 750 kg e imaginou uma carroceria levemente arredondada.
Hirst até gostou do rascunho de Pon. O problema foi seu chefe, o coronel Charles Radclyffe, cuja opinião era a de que montar outro carro seria impraticável por sobrecarregar uma fábrica que já enfrentava escassez de recursos e mão de obra.
"O papel de Ben Pon na história da evolução da Kombi foi, assim, sumariamente encerrado, com seu esquema ambicioso, mas bastante factível, naufragado diante do primeiro obstáculo", explica o escritor.
Mas e depois?
Quando chegou a hora de indicar um sucessor para comandar a Volkswagen através de um futuro de paz e crescimento, Hirst apontou para um engenheiro mecânico que começou a carreira automobilística na BMW e que naquele momento dirigia a Opel. A partir de 1º de janeiro de 1948, o alemão Heinz Nordhoff era o novo diretor-geral da Volkswagen.
Para converter uma fábrica defasada em potência industrial, o experiente Nordhoff sabia que precisava de outro modelo para encaixar na linha de produção. Apresentada à imprensa em 11 de novembro de 1949, a Transporter teve a primeira unidade saída da linha de produção em 8 de março de 1950 em três versões: Panelvan, Microbus e Kombinationsfahrzeug, "palavrão" que significa veículo de usos combinados em alemão - e que, no Brasil, virou simplesmente Kombi.
"Poucos, se é que alguém o fez, reconhecem que sem Nordhoff não teria existido a Kombi; que a ideia de Ben Pon era exatamente aquela, um esboço num pedaço de papel, descartado pelo coronel Radclyffe como impraticável", pondera Copping, que ainda questiona: "se Ben Pon se sentiu subtraído da glória associada à ideia de um novo tipo de veículo de entregas, por que não se manifestou e negou que Nordhoff e Alfred Haesner haviam planejado a criação de um furgão durante uma viagem de carro que fizeram juntos cerca de um ano antes?".
Copping conclui que Nordhoff pode ou não ter tido contato com o desenho de Pon, mas, ao fim e ao cabo, foi ele quem efetivamente materializou a Kombi - que nasceu com 4,1 metros de comprimento, 1,7 m de largura, 1,9 m de altura e um motor de 25 cv.
O autor também levanta a hipótese de Nordhoff ter instruído Haesner - o gerente de desenvolvimento que pôs de pé os protótipos e depois os testou exaustivamente - a trabalhar a partir dos desenhos de Ferdinand Porsche para um veículo utilitário baseado no Fusca.
O que corrobora a recente revelação do historiador Alexander Gromow: Porsche patenteara "um chassi para veículo automotor, no qual o banco do motorista foi movido para frente, para, por exemplo, entre as rodas dianteiras, isto para permitir uma grande área útil de carga" em fevereiro de 1941.
"Quem inventou a Kombi, ou melhor, desenvolveu um veículo de transporte usando parte dos componentes mecânicos do Fusca (e eventualmente dando uma olhada no que Porsche já tinha feito neste sentido antes da Guerra) foi a equipe de técnicos da VW do pós-guerra contratados por Nordhoff. Mas, para mim, a "origem dos tempos" no caso da Kombi iniciou com Porsche, e só não terminou com ele devido à Segunda Guerra Mundial. Ben Pon era um comerciante que queria ter um produto para vender e fazer lucro. O esquema que ele fez naquela agenda qualquer um que estivesse em contato com a Volkswagen e conhecesse sua técnica faria. Chamá-lo de inventor da Kombi é uma grande bobagem", arremata Gromow.
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