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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que crianças não podem mais engraxar sapatos na fábrica da GM

Colunista do UOL

06/07/2022 11h25

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(SÃO PAULO) - "Veio à tona nos últimos dias a coluna publicada no fim de junho pelo jornalista Chico Lelis a respeito da "saudosa época" em que crianças podiam trabalhar engraxando sapatos na fábrica da GM, em São Caetano do Sul, São Paulo. Já no título fica claro o completo desconhecimento do jornalista sobre o tema e as diversas violações de direitos sugeridas por sua coluna, a começar pela falta de pesquisa a respeito do nome da lei ao chamar o Estatuto da Criança e do Adolescente de "Estatuto do Menor e da Criança".

Convido Chico e seus leitores para uma reflexão, inclusive para informar que não existe Estatuto do "Menor", mas sim o ECA, ainda tão desconhecido da população em geral - inclusive por alguns jornalistas -, embora o documento tenha revogado o 'Código de Menores' (Lei n. 6.697/1979) em 1990, há 32 anos, instituindo direitos a crianças e adolescentes.

A opinião já era manifestada por Chico Lelis há tempos e mesmo com as intensas discussões atuais sobre o ECA, sua vigência e implementação prática , e pela dicção do Art. 227 da Constituição Federal que trata da absoluta prioridade no cuidado de crianças e adolescentes, colocando-os a salvo de qualquer forma de violência, exploração etc., o texto publicado novamente em pleno 2022 indica que, "nos tempos em que menores podiam trabalhar", as crianças engraxavam sapatos e não trabalhavam para o tráfico.

É importante notar que Chico faz um recorte em seu texto, pois trata de crianças pobres e em situação de vulnerabilidade, vez que certamente a criança a que ele se refere no texto não era o filho ou um parente seu ou do então Presidente da GM, também citado no texto. É a mesma criança que hoje, segundo o jornalista, trabalha para o tráfico. Há não só uma discriminação etária, por achar justo que crianças trabalhassem em situação irregular ganhando "3 dinheiros" (expressão usada no texto base para esta crítica), enquanto os funcionários da GM batalhavam em "greve histórica" para reajuste salarial e redução de jornada. Há uma discriminação de raça e de classe, que obriga crianças pobres a contribuírem com o incremento da renda familiar, ainda que isso lhe custe tempo de educação, saúde, lazer, etc.

A Constituição Federal atual diz no artigo citado acima, mais propriamente em seu inc. II, § 3º, que a proteção integral de crianças e adolescentes passa pela idade mínima de quatorze anos para a admissão ao trabalho, quando se admite a contratação de menores aprendizes (CF, Art. 7º, inc. XXXIII), inclusive com direitos previdenciários e trabalhistas. Tal direito é reforçado nos Arts. 60 e seguintes do ECA. Ou seja, a nossa legislação proíbe qualquer trabalho realizado por crianças abaixo de 13 anos, sob qualquer condição, e é um desrespeito às normas vigentes que o jornalista manifeste sua opinião sem qualquer ressalva, normalizando a exploração que assistia de camarote antes da vigência do ECA. Os tempos mudaram e é preciso evoluir no debate.

Mas vamos imaginar que Chico estivesse falando da época em que Cliff Vaughan teria sido presidente da GM, "entre 1983 e 1987", quando estava em vigor no país a Constituição de 1967 . Em seu Art. 158, inc. X, a CF vigente à época já previa a "proibição de trabalho a menores de doze anos e de trabalho noturno a menores de dezoito anos, em indústrias insalubres a estes e às mulheres". Já havia, portanto, clara violação da GM ao permitir que as crianças estivessem na fábrica sendo exploradas por alguns trocados apenas para deixar lustrados os sapatos dos executivos da montadora.

E ainda vamos imaginar que Chico estivesse falando de adolescentes maiores de 12 anos à época, note-se que o texto não fala em remuneração adequada, em garantia de emprego digno, em um compromisso real da GM para que os adolescentes tivessem acesso a um ensino de qualidade, apoio na continuidade dos estudos, melhores condições e, ainda com um olhar meritocrático e isolado da realidade, indica que ele teria feito o "bem" orientando que as crianças cobrassem mais do então presidente. Eram "filhos de funcionários", talvez os mesmos que estavam na fatídica greve por melhores condições de trabalho, justamente porque a GM não lhes garantia o mínimo e tinham que complementar a renda familiar com o trabalho infantil da prole.

Quiçá na visão do jornalista, era melhor ter os sapatos bem lustrados e a cabeça tranquila por ter supostamente ajudado uma criança dando-lhe "3 dinheiros", do que ter consciência de classe e enxergar a vida que havia por trás do aparato escancarado na foto da coluna de Chico Lelis no jornal "Auto Enstusiastas", utilizando os privilégios e o poder de decisão que certamente tinha na época, como ainda tem hoje, trabalhando diretamente para combater a violação, a pobreza, as péssimas condições de trabalho e mudar, efetivamente, a enorme desigualdade social do nosso país, a começar pelo respeito aos direitos de crianças e adolescentes.

Talvez Chico não saiba que o Brasil tem uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a respeito de trabalho infantil , que muito se assemelha ao fato que ele narra em seu texto. Resumidamente, em 1998 ocorreu a explosão de uma fábrica de fogos de artifícios na Bahia e dos 64 trabalhadores mortos, 22 eram crianças e adolescentes de 11 a 17 anos, todos pobres e em situação de vulnerabilidade, de modo que a condenação brasileira impôs o dever de se erradicar e punir o trabalho infantil.

A CIDH chamou atenção para o fato de que há no país uma "discriminação estrutural e intersecional que tem como consequência e efeito que [crianças, adolescentes e mulheres pobres] devam recorrer a trabalhos em condições ilegítimas do ponto de vista do direito internacional dos direitos humanos". A necessária mudança desse cenário passa pela opinião pública, pela informação à população, de modo que não podemos mais aceitar que haja qualquer violação de direitos infanto-juvenis, pela própria leitura da nossa Carta Magna.

Talvez Chico também não saiba que há um problema gravíssimo de falta de dados e políticas públicas voltadas à participação de crianças e adolescentes no tráfico, como alerta o Instituto Alana em texto publicado por Ana Cifali e Mayara de Souza , com ações "que previnam o envolvimento de adolescentes e jovens com o tráfico de drogas, com destinação orçamentária privilegiada para garantir os direitos dessa parcela da população, conforme preconiza a regra da prioridade absoluta". Problema agravado pela falta de outros direitos básicos, como boas condições de saúde, trabalho, educação, alimentação, acesso à justiça, entre outros, não só por crianças e adolescentes, mas por suas famílias.

Portanto, não eram bons tempos quando as crianças podiam "trabalhar honestamente" na GM, ignorando-se por completo o que determina a lei, e estas crianças não estão, hoje, trabalhando para o tráfico. É uma associação impossível de se fazer, ainda mais ante a completa falta de embasamento teórico, apresentada de forma irresponsável por um formador de opinião que ocupa lugar de renome em sua profissão.

Assim, deve ser rechaçada por completo qualquer matéria jornalística que tente justificar a mínima violação de direitos infanto-juvenis e eliminado o saudosismo de uma época obscura quando a exploração de crianças era normalizada e aceita no Brasil, como explicado, principalmente de crianças pobres e vulneráveis.

Por isso, esse texto é uma pequena reflexão para que Chico Lelis e seus leitores, bem como os veículos nos quais a opinião do jornalista fora publicada, busquem consciência sobre a gravidade dos fatos alegados e para que a população conheça os termos do ECA, o arcabouço normativo de proteção de crianças e adolescentes, e a prioridade absoluta que precisamos garantir ao assunto. Não se pode mais admitir retrocessos aos direitos humanos e às garantias de proteção, muito menos quando temos crianças e adolescentes no centro do debate. Não sou eu quem diz, é a Constituição".

Excepcionalmente, este artigo é assinado por Marília Golfieri Angella, sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella - Advocacia Familiar e Social, especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP e professora colaboradora do FGV Law.