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Paula Gama

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tapa, arma e racismo: entregadores contam rotina de humilhações em delivery

Colunista do UOL

20/03/2023 04h00

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Nas últimas semanas, o vídeo de um entregador de aplicativo sendo golpeado no rosto por um cliente viralizou nas redes sociais. O trabalhador Yuri Moraes de Araújo, de 21 anos, foi agredido com tapas por um policial penal após se recusar a levar o pedido até a porta do apartamento, tarefa que não é obrigatória no iFood, plataforma usada na entrega. O cliente e policial penal Alex Ramos Cabral, de 43 anos, assumiu ter agredido o entregador "após ser desrespeitado".

A situação, apesar de extrema, não é um caso isolado. UOL Carros conversou nos últimos dias com diversos entregadores por aplicativo sobre "clientes que não têm razão". Ou seja, usuários das plataformas de delivery que humilham, destratam e até agridem os trabalhadores ao serem contrariados.

De acordo com a maior parte dos relatos, as discussões e humilhações se dão, quase sempre, pelos mesmos motivos: erro no endereço, atraso na entrega e, principalmente, quando o entregador se recusa a levar o produto na porta do apartamento, esperando o usuário na portaria do prédio.

Assim como no caso citado acima, o entregador Vinicius Ritter Marx conta que já sofreu violência por se recusar a entregar um pedido na porta do apartamento do cliente. Segundo ele, por um erro na localização indicada pela própria cliente, um pedido atrasou.

Para entender o que estava acontecendo, precisou telefonar, via plataforma do iFood, para a usuária, que respondeu com truculência que o endereço estava errado e exigiu que o pedido fosse levado até a sua porta. Vinícius, então, alertou que não seria possível devido ao atraso.

"Fui lá no novo endereço entregar e, quando cheguei, ninguém estava aguardando a entrega. Liguei três vezes até ela atender novamente. Quando ela saiu, já veio com a arma em punho, me abordando como se eu fosse um bandido. Do nada, chegou o marido dela em um carro, entrou na rua dando cavalo de pau e quase atropelou algumas crianças que brincavam. Ele também apontava uma arma para mim".

Mesmo estando de bicicleta, Vinícius afirma que conseguiu fugir. "Mandei mensagem para o iFood, informei o que aconteceu, mas só recebi um e-mail com uma mensagem pré-programada genérica, e mais nada", lamenta.

Segundo Júlio Tim, motoboy há quase 18 anos, o constrangimento é diário. "É cliente que xinga, que não tem uma boa recepção. É muito humilhante ver como não somos valorizados. Os patrões não querem saber o que aconteceu, você (entregador) tem que engolir seco, fazer cara de paisagem e seguir em frente. Se bater de frente, é mandado embora", desabafa.

Outro entregador ouvido pela reportagem, Sandro Murillo crê que falta uma comunicação clara das plataformas sobre não ser obrigatório subir até o apartamento do cliente. Os profissionais esclarecem que a tarefa pode parecer simples, mas acaba atrasando outras entregas. Além disso, nem sempre é fácil encontrar uma vaga segura para moto ou bicicleta na frente no condomínio.

"Não vou dizer que 100% dos clientes são mal educados, mas a maioria vem me surpreendendo com um ar de superioridade diferente, achando que são donos do mundo. Não somos obrigados a subir até a porta, mas não me importo, desde que ele seja educado. Mas na cabeça deles somos obrigados a entrar no condomínio e subir, acho que essa informação tinha que ser repassada com um pouco mais de seriedade. Somos hostilizados e oprimidos por gente sem educação e sem noção", reclama.

O relato de Nunes Paes, entregador no Rio de Janeiro, mostra que a estigmatização da profissão vai além da relação entre prestador de serviço e cliente. Ele conta que sofreu racismo por ser motoboy e negro na portaria de um condomínio na Penha.

"Já havia feito entregas nesse condomínio algumas vezes. Quando o morador não desce para receber, deixamos na administração. Quando estava me encaminhando para o local, um segurança me barrou e disse que o inquilino teria que descer. No mesmo momento, vários entregadores brancos tinham livre acesso à recepção", lembra.

Segundo o entregador, a situação escalou até um ponto que o segurança o ameaçou com um pedaço de madeira. "Cheguei a chamar a polícia, que foi até o local, mas tentou a todo momento me convencer a não prestar queixa, pois ficaria 'marcado' pela equipe de segurança. No fim das contas, desisti, mas não pego mais entrega para aquele condomínio com medo de ser hostilizado novamente."

"Estamos sozinhos nessa", diz união dos motoboys

Breno Teles, representante da União dos Motoboys e Mototaxistas do Rio de Janeiro, diz que os entregadores estão sozinhos nesse embate. "Estamos super desprotegidos. A proteção da classe somos nós. Às vezes, quando isso acontece, voltamos ao local com 200/300 motoboys para um buzinaço. Para mostrar que não somos reféns", afirma.

Ele também lamenta que, atualmente, a classe esteja completamente dependente dos aplicativos. "O aplicativo acabou com a nossa classe. É como se, antes, a gente fosse todo dia pescar dez peixes no rio e levasse todos eles para casa. Agora, os aplicativos chegam com inovação, filtram todos os peixes para o rio deles. Nós pescamos dez peixes e damos sete para os aplicativos. Diversas vezes, os aplicativos cancelam nossas contas porque o cliente, mesmo recebendo o pedido, diz que não recebeu e pede estorno. Não temos voz", lamenta.

O que dizem as plataformas

Ao UOL Carros, o iFood reforçou que é contra quaisquer desvios de conduta que afetem os entregadores e que as boas práticas na relação a esse público têm sido constantemente reforçadas nos canais de comunicação da empresa e também em campanhas nas redes sociais, e pelo próprio aplicativo para clientes.

"Caso um entregador seja submetido a um caso de violência ou assédio moral, ele deve acionar imediatamente a empresa pelo app de Entregadores para a ocorrência ser analisada, o cliente identificado e banido da plataforma se for necessário", disse a empresa.

Quanto subir até o apartamento do cliente, a plataforma disse que não existe obrigatoriedade e que não faz nenhuma exigência aos profissionais que trabalham na plataforma para realizar a entrega diretamente no apartamento do cliente, "por entender que há variáveis como regras do condomínio, questões de segurança ou por não existir condições de estacionar a moto na via pública, por exemplo".

O Rappi disse que repudia qualquer comportamento ilícito ou desrespeitoso de estabelecimentos, entregadores parceiros e usuários. "A empresa informa ainda que investiga todas as reclamações que possam ocorrer em relação à má conduta ética de alguma das partes desse ecossistema. Lembrando que qualquer comportamento antiético é expressamente vedado pelos Termos e Condições do Rappi", disse por meio de nota.

A empresa esclareceu ainda que os entregadores parceiros do Rappi não são obrigados a subir até a porta do apartamento do cliente. "O indicado, nos Termos e Condições do aplicativo, é que ele aguarde na portaria das casas e prédios. A opção de subir, inclusive, não existe no app. Como suporte para lidar com quaisquer situações, assim que o entregador se cadastra na plataforma, ele recebe os Termos e Condições de uso, além de uma série de vídeos com orientações sobre o dia a dia de trabalho".

As duas plataformas afirmaram que incentivam que os entregadores registrem boletim de ocorrência em caso de violência.

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