Paula Gama

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Montadoras em guerra: incentivo do governo racha associação de fabricantes

Um detalhe na reforma tributária - que poderia prorrogar os incentivos fiscais para fabricantes de veículos no Norte, Nordeste e Centro Oeste - causou um verdadeiro racha entre as principais montadoras do país. De um lado está o grupo Stellantis, protagonizado pela Fiat, que tem 32,12% do mercado brasileiro. De outro, algumas das principais fabricantes de carros no país que, juntas, detêm 48,45% dos emplacamentos de automóveis e comerciais leves em 2023.

A coluna conversou, em condição de anonimato, com representantes de três das quatro montadoras que lideram a investida pelo fim dos benefícios fiscais em 2025. Os executivos confirmam que estão apresentando ao Congresso argumentos contra a renovação, mas que apoiam incentivos temporários para novas fábricas, como a da BYD na Bahia.

"Não somos contra novos investimentos, tanto que apoiamos o incentivo temporário à BYD, que é um novo tipo de investimento, em carros elétricos. Agora, incentivos antigos, que já foram amortizados, usados só para remeter lucro para a matriz, que fica na Itália, não fazem mais sentido", argumentou um dos executivos consultados.

Uma reclamação forte entre as montadoras contrárias ao programa é de que uma decisão do STJ permitiu que a Stellantis usasse o excedente do crédito que recebe no Nordeste em todos os estados brasileiros. Um dos executivos chegou a afirmar que os benefícios geram uma concorrência tão desleal que a renovação deles pode levar a uma drástica redução de investimento no país por parte da marca em que trabalha.

Racha na associação de montadoras

O conflito de interesses entre as montadoras causou mal-estar entre as associadas da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), presidida por Márcio de Lima Leite, que também é vice-presidente Jurídico, Tributário e de Relações Institucionais da Stellantis.

De um lado, a Anfavea afirma que não se posiciona - e nunca se posicionou - sobre incentivos fiscais regionais, uma vez que cada montadora tem seu interesse. Do outro lado, os fabricantes do Sul e Sudeste argumentam que o fato de o presidente ter uma opinião pessoal clara - por ser executivo da Stellantis - causa no governo uma impressão de que a posição é da indústria como um todo.

"Hoje não nos sentimos representados pela Anfavea. A Associação está nos conselhos mais importantes do governo e tem usado esses benefícios para articular os pontos da Stellantis. A narrativa está tomando ares mais palatáveis por conta dessa representação", disse um dos executivos entrevistados pela coluna.

UOL Carros também entrevistou o presidente da associação. Márcio de Lima Leite afirma que a Anfavea se posiciona 100% a favor da Reforma Tributária, mas que os incentivos regionais não são um consenso dentro da associação, que, em 65 anos, nunca se posicionou sobre o tema.

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"A Anfavea não pode privilegiar nenhum estado, defendemos o setor e a produção no Brasil. Onde vai ser alocado o investimento, é decisão da montadora", disse o presidente da entidade.

Ele também afirma que, entre as regras da associação, válidas para o presidente e os 31 vice-presidentes, está pontuado que nenhum representante da Anfavea pode falar em nome de suas empresas ou defender qualquer assunto não acordado em reuniões de diretoria durante as agendas da associação.

"Além disso, as reuniões sempre têm presença do diretor executivo ou do diretor de assuntos governamentais, não há reuniões exclusivas do presidente com o governo", se posiciona.

Leite também pontua que a regra não impede que, fora das atividades da associação, o executivo defenda o ponto de vista da empresa que trabalha. Alguns executivos defendam que, a partir da próxima gestão, a Anfavea passe a ter uma governança profissional, sem ligação com nenhuma montadora.

O que diz a Stellantis

Em entrevista à coluna, o vice-presidente de Comunicação Corporativa da Stellantis, Fabrício Biondo, argumenta que o incentivo foi criado para reduzir o gap competitivo de cerca de 20% de produzir no Nordeste em relação aos estados do Sul e Sudeste.

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"Esse estudo feito pelo governo federal foi pensado quando tínhamos um mercado de 3 milhões de carros vendidos por ano, entre 2011 e 2012. O incentivo foi criado para cobrir esse gap, não para uma empresa. A partir do momento da instalação da fábrica, o incentivo passa a ser reduzido gradualmente, à medida que novos fornecedores vão chegando à região", explica.

Segundo Biondo, atualmente, são 38 fornecedores de peças na região, chegando a 50 no ano que vem e a 100 no final da década. "Quando chegarmos a 100 empresas fornecedoras, conseguiremos sobreviver na região sem o incentivo. Por isso, em primeiro lugar, defendemos a reforma tributária, e também pleiteamos a redução gradativa do incentivo até 2032, que é quando acabam também os incentivos estaduais", informa.

Sobre o mal-estar causado entre os concorrentes, Biondo afirma que, para a Stellantis, as discussões atuais deveriam ser para atrair novos investimentos no país.

"O Brasil não é um país competitivo. Estamos em disputa com outros países, como o México e a China. Enquanto a gente tentar disputar entre nós, estaremos destruindo a indústria. Deveríamos estar de mãos dadas para trazer mais produção. Deveríamos estar no governo discutindo a nova regra para que o Brasil estivesse na vanguarda para atrair investimento dos outros países, e não brigando entre si."

Origem da crise

O clima começou a esquentar em julho, quando a reforma tributária foi aprovada na Câmara dos Deputados. Na época, foi posto às pressas no texto da PEC um dispositivo que prorrogava os benefícios fiscais para fabricantes de veículos no Norte, Nordeste e Centro-Oeste - com fim previsto para 2025 - até dezembro de 2032.

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Os deputados rejeitaram o aditivo, mas em novembro será votado novamente pelo Senado Federal. Dessa vez, a proposta conta com apoio do presidente Lula - que quer sacramentar a instalação da BYD na Bahia - e lobby da Stellantis, principal beneficiada pelo programa.

As Políticas Automotivas de Desenvolvimento Nacional (PADR) foram criadas no fim da década de 1990 - com validade até 2010 - para incentivar, temporariamente, o desenvolvimento da indústria automotiva no país. A ideia era fomentar as regiões menos desenvolvidas - Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os benefícios já foram renovados duas vezes: até 2020 e, posteriormente, até 2025.

Trata-se de créditos presumidos do IPI e PIS/Cofins, cuja maior beneficiada é a Stellantis, com sua fábrica em Pernambuco, e, em menor proporção, desde 2020, Caoa Chery e HPE/Mitsubishi, ambas de Goiás. A medida, na prática, torna os veículos fabricados nessas regiões mais competitivos devido ao custo de produção menor em relação aos fabricados no Sul e Sudeste.

Fernando Brandariz, advogado especializado em direito empresarial, explica que, por enquanto, nada está definido, pois o texto da reforma tributária ainda vai ao Senado, que pode optar por manter a decisão da Câmara ou voltar com os benefícios.

Ele explica que o maior argumento dos legisladores que são contra a manutenção dos benefícios é a ideia de por fim à guerra fiscal entre os estados. "Acontece muito de uma empresa ou indústria sair de um estado e ir para outro que oferece incentivos vantajosos, uma verdadeira guerra fiscal. Muitos querem uma alíquota geral para evitar essa briga."

TCU questiona incentivos

Em março deste ano, uma auditoria do Tribunal de Contas da União concluiu que a maturidade de políticas públicas das Políticas Automotivas de Desenvolvimento Nacional apresenta deficiências em aspectos estruturantes, como uma formulação sem objetivos concretos, metas, indicadores e prazos.

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Na análise de resultados, o TCU afirma que verificou que, embora as PADR custem mais de R$ 5 bilhões por ano para os pagadores de impostos e já tenham consumido mais de R$ 50 bilhões desde 2010, entregam pouco de desenvolvimento regional aos territórios beneficiados. Quando comparados aos locais que não receberam os benefícios das PADR, as regiões beneficiadas não apresentaram perfil superior de desenvolvimento econômico.

Um dos pontos críticos é que as empresas não promoveram a aglomeração industrial ao redor das fábricas beneficiárias da política, e ainda adquirem a maior parte de seus insumos de fornecedores das regiões Sul e Sudeste.

"Como resultado, é elevado o custo de renúncia de receitas, de cerca de R$ 34 mil mensais por emprego gerado, considerando o caso da instalação da fábrica instalada em Pernambuco como referência", disse o TCU à época.

Para o ministro-relator do processo, Antonio Anastasia, as políticas de incentivo são fundamentais para o país, mas devem ser avaliadas.

"Nós todos reconhecemos a importância de uma política pública efetiva de desenvolvimento regional para diminuir as desigualdades. Todavia, essas políticas públicas que se consolidam e se alicerçam em incentivos tributários necessitam ser avaliadas. Essa, em especial, uma política automotiva de desenvolvimento [que] demonstrou as suas fragilidades. De fato, uma despesa muito grande para resultados pequenos pelos valores alocados", destacou o ministro durante a sessão plenária.

Sobre a análise do TCU, Fabricio Biondo afirma que o Stellantis passou a se beneficiar do incentivo em 2015, mas estranha que o relatório do TCU só analise o ano de 2019, e que também não considere as outras fábricas instaladas no Norte, Nordeste e Centro Oeste à época, como as plantas da Mitsubishi, Ford, Troller, Caoa e Moura.

Reportagem

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