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Por que futuro dominado por carro elétrico está a um passo de virar utopia
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O dieselgate, como ficou conhecido o escândalo sobre fraude aos testes de emissões de carros a diesel protagonizado pela Volkswagen, foi um divisor de águas na indústria automobilística mundial. O caso explodiu durante o Salão de Frankfurt (Alemanha) de 2017. De lá para cá, o discurso sobre o carro elétrico, que até então era fraco, ganhou protagonismo.
E, aos poucos, o protagonismo se transformou em uma peça teatral de um ator só. O carro elétrico se transformou na única aposta de grande parte das montadoras. Aos poucos, fabricantes de veículos foram anunciando seus planos de ter apenas modelos 100% a eletricidade (chamados de BEVs) a partir de uma determinada data.
Os prazos variam, mas são próximos: a próxima década. Em 2035, entraria em vigor a proibição das vendas de carros zero-km que emitem poluentes na União Europeia, medida que determinaria a morte do veículo a combustão nos países do bloco. Mas, duas semanas atrás, a UE recuou.
Atendendo um pedido da Alemanha, que foi corroborado por diversos outros países, a União Europeia determinou que os carros a combustão podem continuar sendo vendidos de 2035 em diante, desde que usem combustíveis sintéticos - um exemplo é desse tipo de produto é o etanol brasileiro (leia mais abaixo). A notícia foi um baque para o futuro da mobilidade imaginado até então: totalmente elétrico.
Mercado dos EUA resiste
O pedido para que os carros a combustão continuem sendo vendidos, acatado pela UE, vem do país que concentra a maior parte das importantes montadoras da Europa (a maioria comprometida com uma gama completa de BEVs), a Alemanha. Das marcas alemãs, Volkswagen e Audi, que fazem parte do mesmo grupo, foram uma das primeiras anunciar que, na próxima década, não terão mais modelos a combustão em suas linhas.
A Mercedes-Benz fez anúncio semelhante, mas deixando uma entrelinha: a manutenção dos carros a combustão para alguns mercados específicos (sem mencionar quais). Na Porsche, o plano é que em 2030 a gama de zero-km vendidos seja 80% BEV, restando os outros 20% para híbridos e veículos sem eletrificação.
Já a BMW jamais planejou tirar os carros a combustão de sua gama. A marca os manterá junto com os elétricos. Ainda assim, anunciou que suas controladas inglesas, Mini e Rolls-Royce, caminham para uma linha 100% BEV na próxima década.
Não será nenhum espanto, no entanto, se em breve todas essas marcas, inclusive as que anunciaram caminhar para um futuro exclusivamente de BEVs, em breve divulgarem uma mudança de planos. O que pode ser, aliás, um grande alívio para as empresas, que têm um grande entrave em seus planos eletrificados: os Estados Unidos.
Trata-se do segundo país que mais vende carros no mundo, atrás da China. Por isso, é grande o impacto do consumidor americano nas decisões mundiais das empresas.
O presidente dos EUA, Joe Biden, vem batendo forte no discurso de eliminar emissões de poluentes por automóveis. O fato, no entanto, é que poucos Estados estão seriamente comprometidos com a meta - e, no país, a maior parte das leis é estadual. Entre eles, há a Califórnia, onde modelos que geram poluição ao rodar estão banidos a partir de 2035.
Washington também já aprovou essa legislação. Outros 13 Estados estudam o comprometimento com essa meta, mas em nenhum deles ela virou lei. E sem a obrigatoriedade, são escassas as chances de o consumidor americano se comprometer com o carro elétrico.
Por que o americano não quer o carro elétrico
O NADA Show é uma feira anual de concessionários americanos, que cobri em 2022 e 2023. No primeiro ano de cobertura, ainda no início do pós-pandemia, o desafio de revendedores era se adaptar à uma realidade apenas com BEVs. Isso porque, além das marcas europeias, as dos Estados Unidos também anunciaram caminhar para esse futuro - a General Motors, maior do país, é uma delas.
Em 2023, o discurso mudou. Ponte entre montadora e cliente, concessionárias fizeram pesquisas que mostram o desinteresse do consumidor americano pelo BEV. Nesse contexto, os próprios revendedores já começam a se colocar contra eles.
A principal questão do consumidor é a autonomia. Os EUA são um país de dimensão continental, diferentemente da pequena Noruega, um exemplo contemporâneo de adesão ao BEV. E o americano tem o hábito de viajar de carro pelo país, trajeto feito pelas inúmeras interstates - rodovias interestaduais de pista dupla e velocidade alta.
Um carro a combustão atinge até 800 km por tanque. O mais eficiente dos elétricos, em uma rodovia de velocidade alta, dificilmente chega aos 400 km. Montadoras vêm divulgando autonomias cada vez maiores, de mais de 600 km. No entanto, só dá para alcançar esses números em cidades, com velocidades mais baixas e a possibilidade de regeneração da bateria por meio de frenagem e desaceleração.
A autonomia vem evoluindo, mas ainda é muito limitada em estrada. E aí está o segundo ponto: a infraestrutura. Independentemente da instalação de postos de recarga em rodovias - ainda muito ineficiente na maior parte dos países -, recarregar um veículo elétrico demora, quando comparado ao carro a combustão.
Encher totalmente o tanque de um carro na bomba leva de três a cinco minutos. Recarregar a bateria de um carro que está próximo do zero vai demorar pelo menos 40. Esse fator afasta ainda mais o consumidor dos EUA do desejo de ter um carro elétrico.
Problema ambiental
Desde que o carro elétrico ganhou protagonismo, estudos vêm sendo feitos sobre o impacto ambiental desse tipo de veículo. Na teoria, o BEV é uma solução perfeita. Afinal, ao rodar, não emite gás nenhum.
Os grandes centros têm problema de poluição concentrada, e os gases nocivos que saem dos escapes dos veículos representam parte da culpa por essa realidade.
Para evitar o acúmulo de gases nocivos no ambiente urbano, onde vivem milhões de pessoas, já há cidades europeias que não permitem a circulação de veículos a combustão em algumas partes. Porém, o carro elétrico não resolve o problema da descarbonização.
As emissões de gás carbônico são medidas de maneira diferente no impacto ambiental. O CO2 é dos causadores do efeito estufa. No entanto, seu impacto pode ser compensando por meio de ações como o cultivo de matéria-prima no agronegócio, o plantio de florestas e até a produção de combustíveis sintéticos.
Nesse contexto, o carro elétrico funciona muito mais como uma solução de mobilidade urbana do que uma resposta para os problemas ambientais. Isso porque o BEV tem uma pegada de carbono alta, tanto ao rodar quanto no processo de produção.
Na Europa, a principal fonte de energia é termoelétrica, alimentada por carvão, com altas emissões. Diversos estudos, entre eles da SAE, sociedade de engenheiros automotivos, e da Stellantis, mostram que o BEV tem metade da pegada de carbono de um carro a gasolina, mas maior que a de um veículo a etanol que roda na Europa.
Isso porque a pegada de carbono mede não apenas o rodar, mas também o processo de produção (do carro e do combustível) e a compensação. O etanol é proveniente de culturas agrícolas - no caso do Brasil, a cana-de-açúcar. Isso compensa parte de suas emissões de CO2.
O carro elétrico é reabastecido, na Europa, por energia proveniente de termoelétricas, que não têm compensação. Já no Brasil, em que 70% do abastecimento é por meio de hidroelétricas, o BEV consegue ter pegada de carbono levemente inferior à do veículo a etanol.
No caso de outros combustíveis sintéticos, a compensação pode ser maior. A Porsche inaugurou este ano uma fábrica de gasolina sintética no Chile. Trata-se de um projeto piloto mas, na teoria, o processo de produção do combustível, usando hidrogênio, é capaz de compensar toda a emissão de CO2.
E é esse tipo de combustível, que neutraliza o gás carbônico, o aprovado pela União Europeia em veículos a combustão a partir de 2035. A Porsche já estuda plantas em outros locais, como Austrália e África. O pré-requisito é eficiência em energia eólica, já que a planta tem de ser neutra em emissões.
Emissões neutras no processo de produção são um empecilho para a Europa. O continente não tem capacidade de gerar energia eólica com eficiência. Também não há condições para apostar na solar.
Brasil vai na contramão do BEV
Quando uma marca divulga um posicionamento global, não é um processo simples para a subsidiária anunciar que vai na contramão desse direcionamento. No Brasil, a primeira a fazer isso foi a Volkswagen, dois anos atrás. O então presidente da montadora no País, Pablo di Si (hoje à frente da operação da fabricante nos EUA), se tornou uma voz ativa na ideia do híbrido a etanol como solução de eficiência energética para o mercado brasileiro.
De acordo com o discurso de Di Si, o BEV, para a Volkswagen no Brasil, é uma das respostas, mas a curto e médio prazo apenas com produtos importados. A principal aposta tecnológica da marca é o híbrido a etanol. O executivo foi além: procurou costurar acordos com países que também não vão aderir ao 100% elétrico, para vender o conhecimento brasileiro na produção ao álcool combustível.
Entre os principais alvos está a Índia, que figura entre os maiores mercados automotivos do mundo. Di Si pontuou, aliás, que o etanol pode ser peça fundamental para os carros a célula de combustível - solução vista por muitos especialistas como mais ecologicamente viável que o elétrico recarregado na tomada.
"Se o etanol já está em emissões próximas às do BEV (em ciclo brasileiro), imagine a combinação desse combustível com eletrificação", disse o presidente da Stellantis América do Sul, Antonio Filosa, ao anunciar os planos da marca para a descarbonização no Brasil. Nos bastidores, o conglomerado formado no País por Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e Ram já vinha comentando que não apostava no BEV como principal solução para o mercado nacional.
Porém, mundialmente, a Stellantis anunciou que, a partir de 2030, 50% de seus carros serão BEV na Europa. Nos EUA, 50%. No Brasil, 20%, mas esse número é de eletrificados - ou seja, inclui híbridos. No início de março, o presidente mundial do conglomerado, Carlos Tavares, já havia apontado que o etanol é o caminho para o País.
E, no fim do mês, Filosa fez isso oficial. A Stellantis aposta, no mercado brasileiro, no protagonismo do híbrido a etanol, não do BEV. De acordo com Filosa, "cada país tem de se comprometer a resolver o problema da descarbonização com as fontes e as limitações de custo que tem."
Assim como a Volkswagen, a Stellantis não divulga a data de lançamento de seu primeiro híbrido flex. Porém, de acordo com Filosa, entre 2026 e 2027 já haverá difusão dessa tecnologia no mercado nacional.
No ano passado, a Stellantis obteve cerca de 34% das vendas no Brasil. A Volkswagen ficou com 14%, aproximadamente. Juntas, representam 48% do mercado. 48% que já descartaram o BEV como solução principal para o futuro do automóvel no País.
A GM, que detém 15% do mercado brasileiro, por enquanto adequa seu discurso à diretriz mundial da marca. O conglomerado terá apenas BEVs a partir de algum momento na próxima década. Não será surpresa, no entanto, se em breve a empresa surgir com uma diretriz diferente para o Brasil.
Futuro BEV na berlinda
Na divulgação dos planos da Stellantis para a descarbonização no Brasil, Antonio Filosa foi questionado sobre o híbrido a etanol. "Você considera essa tecnologia uma transição para o 100% BEV?", perguntou um jornalista. "Não", ele respondeu.
"No início do século, havia o carro a combustão, a vapor, e até o elétrico. Acabou se optando pelo a combustão, pois havia baixo volume, e poucos fornecedores", Filosa diz. Para o executivo, o mundo vai agora em uma direção oposta, mas não com uma, e sim com várias matrizes.
Entre elas, estão o BEV e o híbrido combinado a combustíveis ecológicos (como o etanol). A adoção de cada tecnologia dependerá de fatores como os recursos (energéticos e econômicos) da região.
E é mesmo para essa direção que o mundo parece caminhar. Em vez de adotar o carro elétrico como solução para o futuro, cada vez mais o veículo na tomada parece ser uma das respostas, mas não a única. Os combustíveis sintéticos, e ecológicos, surgem como uma alternativa sustentável à complementação da mobilidade.
Chegar à emissão zero, ainda mais em um tempo tão curto (a próxima década), se mostra cada vez mais uma utopia. E não é o elétrico carregado na tomada a resposta para esse fim.
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