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Vender carro é trabalho duro, seja na "boca", seja na loja de Ferrari

Leonardo Felix

Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP)

10/04/2014 07h00Atualizada em 10/04/2014 14h46

Manhã de segunda-feira. Às 10h, Anderson Leocardio e Júnior Nascimento iniciam mais uma semana de trabalho, o primeiro na avenida Juscelino Kubitschek, região de negócios e comércio em São Paulo (SP), e o segundo "da ponte para lá", na avenida do Oratório, zona leste.

Uma hora mais cedo, Eduardo Alves já aparecia em seu escritório na avenida Brasil, coração dos Jardins, região mais nobre da capital paulista, para assumir seu posto. E, antes de todos eles, às 8h30, "Santinho", como é conhecido, chegava à alameda Barão de Limeira, centro de São Paulo (SP) e vizinhança da Cracolândia, para abrir a loja quem no local há 12 anos.

Em comum, todos têm a profissão de vendedor de automóveis e o hábito de trabalhar num intenso corpo-a-corpo com os clientes, mesmo na era do comércio online. UOL Carros acompanhou a rotina desses quatro profissionais durante um dia de trabalho e constatou que, apesar de cada segmento do mercado automotivo ter realidade (e remuneração) distinta da dos demais, não há moleza na venda de carros.

Saiba a seguir como é vender modelos de marca consagrada (Leocardio), de alto luxo (Alves), usados em loja de bairro (Nascimento) e usados na "boca" (Santinho).

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UM VENDEDOR POR VOCAÇÃO
Vendedor numa concessionária da Hyundai há dez meses, Anderson Leocardio, 37 anos, trabalhava antes em banco, mas decidiu trocar de setor ao ser indicado para entrar no Grupo Caoa, vislumbrando melhor remuneração. "Meu ofício é o de vendedor e sou feliz fazendo isso, independentemente do que esteja vendendo. Se tiver que mudar de ramo de novo, para onde dê mais dinheiro, eu mudo", afirma.

Vendedor de loja da Hyundai em São Paulo - Leonardo Felix/UOL - Leonardo Felix/UOL
Anderson Leocardio (ao centro) negocia carro em revenda da Hyundai
Imagem: Leonardo Felix/UOL
Seu expediente vai das 10h às 19h, de segunda a sexta-feira, com plantões todos sábados e em alguns domingos (trabalha domingo sim, outro não, e quando o faz ganha folga num dia da semana). Chega a atender 20 clientes por dia, fora os inúmeros telefonemas. "Só uns 10% de toda essa gente vão realmente comprar", calcula Leocardio.

O atendimento consiste em abordar o cliente que entra na loja, mostrar os carros (na maioria das vezes, o HB20) e acompanhar o cliente num test-drive. Depois, discute detalhes como inclusão de acessórios (instalados na revenda) e condições de pagamento. Uma venda pode ser fechada em 15 minutos, em algumas horas -- ou alguns dias, dependendo da pressa ou cautela de cada cliente.

Mesmo com o negócio fechado, Leocardio ainda recebe constantes ligações para tirar dúvidas, fazer mudanças no pedido ou mesmo ser cobrado a respeito da entrega do carro. "Tem gente ansiosa que liga quase todo dia. Também já atendi um cara que, após fechar negócio, ficou me enchendo para alterar a forma de pagamento, a cor do carro e, por fim, o próprio modelo! É claro que tudo isso atrasou a entrega, e eu ainda tive que ouvi-lo reclamar da demora", lembra. E se o visitante não demonstra real interesse na compra, não há tempo para enrolação. "Tento atender a todos até o final, mas se eu vejo que não vai vingar e o dia está muito cheio, parto logo para o próximo", confessa.

Leocardio também se especializou em vendas diretas para portadores de necessidades especiais, e por isso quase todos os clientes desse segmento são encaminhados a ele. "Dá um bom retorno, porque estou em contato periódico com a fábrica para saber quais são as opções e como atender cada caso. É preciso ter paciência para esse tipo de negócio, e nem todos os vendedores têm", avalia. Outro segredo é prospectar potenciais compradores em seus círculos sociais: "Consigo cerca de 30% das minhas vendas assim".

O EX-GOLEIRO AGARROU AS FERRARIS
Se Leocardio tem meta de vender 20 carros da Hyundai por mês, Eduardo Alves, 40 anos, fica satisfeitíssimo se entregar 20 carros por ano. Isso porque ele é executivo de vendas da Ferrari, num segmento (na verdade, um nicho) muito mais restrito e de altíssimo valor agregado, no qual o relacionamento constante com um número limitado de clientes faz toda a diferença.

Há 15 anos na Via Italia, importadora de Ferrari e Maserati, Alves entrou no ramo totalmente por acaso. Na juventude, foi goleiro profissional de futebol e jogou em equipes como Marília, Nacional (SP), Mixto (MT) e Operário (MS). Após abandonar os gramados, virou vendedor de produtos eletroeletrônicos -- até 1999, quando decidiu arriscar uma mudança de ares. Pediu demissão e, logo depois, enviou currículo à Ferrari, que o contratou no mesmo dia para a função de assistente de vendas.

Vendedor de Ferrari na Via Itália - Leonardo Felix/UOL - Leonardo Felix/UOL
Alves agarrou a chance de vender Ferraris: "Se precisar, levo a outros Estados"
Imagem: Leonardo Felix/UOL
Em três anos, foi promovido a executivo e hoje trabalha de segunda a sexta, das 9h às 19h, e aos sábados, das 10h às 14h. Isso no papel. Na prática, seus horários dependem das necessidades dos clientes. "Se alguém precisar que eu espere até 21h, eu fico. Se precisar que eu abra no domingo de manhãzinha, eu venho", garante o executivo.

Por trabalhar no único showroom de Ferrari zero-quilômetro no Brasil -- que também negocia usados da marca --, é comum Alves viajar para atender compradores em outros Estados. "Quando é mais perto eu até levo o carro para mostrar a ele. Pode acontecer de já deixar o veículo lá, ou mesmo trazer até aqui para cuidar dos detalhes e depois levar de novo. E os clientes fazem questão que eu leve pessoalmente, porque pagam para ter esse atendimento personalizado e exclusivo". O transporte, claro, é feito numa plataforma. 

Devido aos valores envolvidos, a negociação de uma Ferrari demora mais -- às vezes, até anos. "Tenho um cliente que só gostava de Porsche, e levei quatro anos para convencê-lo a comprar uma F430", rememora. Para Alves, paciência, personalização do atendimento e valorização do produto oferecido são elementos essenciais no segmento de luxo. "Trabalho com verdadeiras obras de arte", enfatiza.

Tamanha proximidade com os clientes o fez criar até laços de amizade com alguns. "Sempre sou convidado para festas, aniversários, casamentos... E eu conheci minha mulher porque ela é decoradora da mulher de um cliente meu", revela, com um discreto sorriso.

ELE SABE QUEM PODE COMPRAR
Do glamour de uma Ferrari à simplicidade de um Gol "bolinha" 1997, e de outros usados em exposição na Shiro Motors, situada no Parque São Lucas e que tem como grande mote ser uma loja "de bairro". É lá que trabalha Júnior Nascimento, 30 anos, sócio e vendedor. Nascido em uma família acostumada a "mexer com carros", aprendeu o ofício com o pai e está no ramo desde os 18 anos. "Nunca procurei outra função", diz.

Vendedor da loja de usados Shiro, na zona leste - Leonardo Felix/UOL - Leonardo Felix/UOL
Nascimento: "Conheço o povo daqui e sei quando o negócio não vai virar"
Imagem: Leonardo Felix/UOL
Como não representa nenhuma marca, Nascimento tem de se preocupar com a parte de vendas e também de compras. "Mexo com tudo que tenha motor: de carro 1.0 a trator, sem limite de estado ou idade", explica, antes de finalizar a papelada para entregar um caminhão Volkswagen 8-120 ao seu novo proprietário. Seu estabelecimento também negocia blindados -- o que, segundo Nascimento, é um bom nicho, pois "não oferece muita concorrência".

A jornada diária começa às 10h, sem horário para acabar. "No mínimo é às 18h, mas já houve dia em que eu fechei às 22h". Plantões de fim de semana são raros e, se acontecem, não passam das 14h do sábado. "Eu fico num bairro, então nos fins de semana está tudo fechado. É até meio perigoso deixar só minha loja aberta", conta.

Júnior atende de oito a dez clientes por dia e vende cerca de 15 carros/mês. Além de visitantes da loja, recebe também muita gente indicada por amigos e familiares, como um cliente que interrompeu a entrevista para pedir que ele achasse uma Chevrolet S10 flex para troca. Nessa rotina, não dá para perder muito tempo com quem pretende apenas sondar.

"Tem muito 'balão' que vem aqui só tomar café, mas eu já conheço bastante o povo da região e sei quando não vai dar em nada. Tenho que manter o foco, porque o processo de venda não é tão rápido: a renda e o histórico [de crédito] do pessoal da região são, em média, ruins, então a aprovação de financiamento acaba demorando mais", justifica.

Na hora de comprar, Nascimento prefere negociar só com concessionárias, para evitar dissabores vividos no passado ao pegar direto de particulares. Porém, devido às atuais circunstâncias econômicas, vai ter de começar a "ir para o risco" de novo. "O mercado de usados está travado. Eu não queria, mas vou ter que passar a pegar mais de particulares agora", lamenta.

NA BOCA HÁ MAIS DE MEIO SÉCULO
Aos 72 anos, sendo 52 dedicados à venda de automóveis, "Santinho", como é conhecido, é um dos comerciantes mais antigos do quadrilátero formado por avenida Duque de Caxias, praça Princesa Isabel, alameda Barão de Limeira e rua Helvétia, no "centrão" de São Paulo e conhecido como "boca". Lá se faz de tudo: compra, venda e troca de veículos de todos os tipos e em qualquer estado, em situação regular ou não, para os mais variados fins.

Vendedor de carros na "boca", centro de São Paulo - Leonardo Felix/UOL - Leonardo Felix/UOL
Santinho diante de sua loja, que, como outras da "boca", não tem identificação
Imagem: Leonardo Felix/UOL
É um cenário de vendedores apressados, que correm para lá e para cá enquanto falam no celular, acenam para motoristas que chegam com novas aquisições, ou ficam de prontidão na frente de estabelecimentos sem nome ou identificação na fachada. Na visita de UOL Carros ao local, Santinho foi o único vendedor que topou falar -- sem dar o nome completo, nem se deixar fotografar de perto.

Sua atual loja existe há 12 anos, e negocia aproximadamente 20 automóveis por mês. A maioria da frota é formada por táxis, veículos de difícil aceitação para revenda. "Muita gente tem preconceito, mas são os mais garantidos. Geralmente são de dono único e não apresentam muito problema, estão regularizados. Eles só são mais rodados", diz.

Santinho busca produtos nas mais variadas fontes e aceita o automóvel em praticamente todas as condições: alienado, com multas, dívidas e até falhas mecânicas, "desde que sejam de conserto rápido". Só não vale carro roubado, extremamente avariado ou preso a inventários ou sinistros de seguradoras. "Eu verifico toda a situação do veículo e, se tiver que gastar alguma coisa para regularizá-lo, desconto do valor total combinado", explica.

Também não há discriminação quanto a quem vai comprar seus carros, embora boa parte deles, especialmente os táxis, acabem parando nas mãos de intermediários que os levam para revender em outros Estados. "Aqui muita gente tem preconceito contra táxi, então a gente manda para outros lugares que aceitam melhor esses carros. Só ontem mandei três para o Rio Grande do Sul", narra.

Santinho passa praticamente o dia todo sentado em uma cadeira velha de madeira, ao lado de uma placa com os dizeres "Compro seu carro, mesmo alienado", à espera de novos clientes. Faz companhia a ele a Mel, uma simpática vira-latinha que, entre todos que transitam num ambiente de bagunça e alguma tensão, é o ser vivo mais receptivo ao contato de estranhos...