Sede da corrida mais antiga, Le Mans vive "culto ao carro" há 91 anos
Em tempos de preocupação com o meio ambiente e de busca por soluções inteligentes de mobilidade, gostar de carro ficou démodé. De símbolo do glamour, da independência e de outros fetiches, o automóvel passou a um quase-vilão da sociedade contemporânea, sendo visto por boa parte dos habitantes das grandes cidades como um "mal necessário".
Mas há redutos de resistência a esse fenômeno. Um deles é a pequena cidade francesa de Le Mans. Com menos de 150 mil habitantes, a capital do departamento de Sarthe é conhecida mundialmente por abrigar a corrida de resistência mais antiga em atividade no mundo, as 24 Horas de Le Mans, que este ano foi realizada sábado (14) e domingo (15), com vitória do trio Marcel Fässler, Benoît Tréluyer e Andre Lotterer, da Audi. O brasileiro Lucas di Grassi, ex-F1, chegou em segundo com outro carro da marca alemã.
UOL Carros acompanhou a competição com os olhos voltados ao que se passa por trás dela. Se dentro do circuito de 13.629 metros, formado por trechos permanentes e estradas locais, a prova é conhecida por sua linha "desenvolvimentista" (sempre foi laboratório para testar resistência e eficiência de itens usados em veículos de produção), fora dele ela é atração para automobilistas fervorosos e old school.
É gente que não está preocupada com quantos km/l de consumo ou g/km de dióxido de carbono registra um veículo, e sim com sua potência, torque, estilo e, em muitos casos, com as histórias que um velho companheiro das ruas tem para "contar". Assim, o belo e pacato município francês, que existe há 1.700 anos e mescla estilo clássico gaulês, gótico e até um quê de romano em sua arquitetura, transforma-se anualmente no ponto de encontro de resilientes que, sem pudor, podem demonstrar ali o amor por seu carro.
OSTENTAÇÃO
Logo ao chegar ao autódromo é possível encontrar muitas pessoas que fazem questão de desfilar com seus carrões (pode ser um clássico de coleção ou um superesportivo atual) pelas instalações como quem exibe um verdadeiro troféu. Muitas vêm de outras regiões da França ou mesmo de países europeus, aproveitando as 24 Horas para pegar a estrada e curtir uma divertida viagem, sozinho ou em caravana com amigos e familiares.
É o caso da família Benedek, de Ede, cidade da região central da Holanda. A convite do sobrinho Gert Jan Brinkmar, que já havia visitado o evento duas vezes antes, o empresário Palko Benedek trouxe os dois filhos e mais cinco amigos para acampar ao lado do autódromo -- outra tradição do evento são as acomodações provisórias usadas pelos visitantes para ficar bem perto do centro da ação.
Os nove holandeses viajaram 750 quilômetros para chegar a Le Mans, a bordo de três clássicos: um Jaguar E-Type 1974, uma réplica de um Shelby Cobra 1966 e uma Volkswagen Kombi 1976. "Aqui é uma ótima oportunidade de ver muitos modelos legais, e o espírito [do acampamento] é sempre de confraternização. Todo dia tem festa até as 4h [da manhã]", conta Tijn Benedek, um dos filhos.
Se contemplar os veículos dos espectadores não for suficiente, a organização das 24 Horas oferece várias opções para fanáticos por carros. Na sexta-feira anterior ao evento, há um desfile de apresentação dos pilotos no centro da cidade, em frente à catedral.
Para deixar o público no clima da corrida, os organizadores exibem superesportivos como Ferrari LaFerrari, Lamborghini Aventador, McLaren P1, Bugatti Veyron, Porsche 918 Spyder e Mercedes-Benz SLS AMG neste desfile dos pilotos. Há também o Museu da História do Automóvel, dentro das instalações do autódromo, que exibe desde exemplares históricos do século 19 (há até um De Dion-Bouton & Trépardoux, de 1885, movido a vapor) até o protótipo de corrida híbrido R-18 e-tron quattro, o Audi que faturou as últimas três edições da corrida.
IMPACTOS PARA A CIDADE
Sediar um evento como as 24 Horas de Le Mans é uma tarefa complicada para qualquer cidade, e poderia ser mais ainda para uma em que a população fixa é mais que dobrada com os fãs que visitam o autódromo ao longo do fim de semana (cerca de 250 mil pessoas).
Há um contraste impressionante de cenários. Nos horários de pico, a aglomeração nas ruas faz lembrar a paulistana 25 de Março, e se deslocar de carro por um trecho de um quilômetro pode demorar meia hora. Mas ninguém se importa: 24 Horas existem desde 1923, e quase certamente todos os moradores nasceram e se criaram nesse ambiente. (Em contrapartida, fora do agito provocado pela corrida, o que se vê em Le Mans é típico de uma cidade pequena: gente andando sem pressa pela calçada e poucos carros nas ruas.)
A aposentada Martine Souavin tem 67 anos e comparece aos desfiles dos pilotos desde os 14. Ela e o marido, Gérard, não entendem absolutamente nada de carros e sequer gostam de automobilismo -- mas aprenderam a apreciar a "liturgia" do evento e repassaram essa paixão aos filhos.
"Nós não temos mais idade para assistir à corrida, então vemos só o desfile. Mas meu filho sempre acompanha, e passou a levar nosso netinho ao autódromo", conta.
Muitos habitantes aproveitam a época para gerar receitas. Há quem venda produtos relacionados à corrida nas dependências da pista, e outros 1.700 são contratados pela organização para trabalhar como fiscais extra-pista. "Já faz parte de nossa rotina", afirma Philippe Damians, morador que colabora no evento há 15 anos.
Diferentemente do "circo" da Fórmula 1, que é armado e desarmado nas sedes do campeonato sem deixar marcas permanentes, as 24 Horas de Le Mans é uma atração automobilística que transcende o status de mera "corrida". Em 91 anos, tornou-se um ritual nessa bela cidade encravada no noroeste da França. E tem o carro como protagonista.
Viagem a convite da Audi
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