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Fazer carro é tão caro que até Google e Apple desistiram; UOL Carros conta

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Imagem: Divulgação

Leonardo Felix

Do UOL, em São Paulo (SP)

13/11/2017 10h00

"Especial - Como nasce o carro, capítulo 1": criar um carro não custa pouco, nem é fácil

Mesmo em momento de crise, o Brasil se mantém como um dos 10 maiores mercados automotivos do mundo. Só este ano tivemos/teremos mais de 50 lançamentos.

Em emplacamentos, o Brasil foi responsável por quase 2 milhões de novas unidades de automóveis e comerciais leves vendidas em 2016. Para 2017, a previsão é de alcançarmos 2,4 milhões de unidades. Com gradativa recuperação, a expectativa é voltar à faixa dos 3 milhões de emplacamentos até 2020.

Na base disso, temos um consumidor ainda interessado: o brasileiro gosta de carro, discute automóvel, suas novidades -- e, claro, seus preços. Quem nunca passou por uma concessionária e resolveu dar uma espiada nas principais novidades do ano, mesmo que não tivesse real intenção de compra? Pois é.

Nesta onda de interesse, você já tentou refletir sobre o trabalho que deu e o investimento necessário para que aquele produto estivesse ali? Fazer um carro é tarefa simples? É barato? Existe carro "made in Brazil" do começo ao fim? UOL Carros vai te contar no especial "Como nasce um carro", que tem cinco reportagens. 

Veja mais

Parte 1: carro é tão caro que até Google e Apple desistiram de fazer
Parte 2: 
Brasil é referência em testes de resistência
Parte 3: a história do Honda WR-V
Parte 4: "Este carro é meu bebê"

Parte 5: da "mula" ao carro que você compra 

Milhares de horas, milhões de reais

Acredite: tempo e custos envolvidos na criação de um carro são astronômicos. A fatura do desenvolvimento jamais será inferior a US$ 100 milhões (cerca de R$ 320 milhões no câmbio médio atual) e a duração, nunca menor do que dois anos.

Nessa conta, consideramos apenas projetos derivados de automóveis já existentes, compartilhando alto percentual de componentes. É o caso do primeiro Ford EcoSport em relação ao Fiesta ou, mais recentemente, de um Honda WR-V em relação ao Fit.

Agora, se o veículo for totalmente novo, pode estar certo de que será necessário dedicar de três a quatro anos para fazê-lo ficar pronto -- há não muito tempo, o ciclo podia durar de seis ou oito anos. Os gastos sobem para algo entre US$ 400 a US$ 500 milhões (de R$ 1,3 a R$ 1,6 bilhão), fora a mobilização de centenas (ou milhares) de engenheiros. Acha muito? 

Se o projeto em questão envolver a criação de uma plataforma -- uma base para fabricação de toda uma nova família de modelos ou toda uma nova geração de tecnologias -- os gastos ficam ainda maiores: passamos a flertar com a casa de US$ 1 bilhão (de R$ 3,2 bilhões para cima), porque é preciso renovar também o maquinário de fabricação.

Portanto, se seu carro não é tão inteligente e conectado quanto você gostaria, saiba que é porque boa parte de suas soluções tecnológicas foi pensada quatro, cinco anos antes de ele ganhar as ruas. Ou porque a verba disponível não era suficiente.

Volkswagen MQB - Murilo Góes/UOL - Murilo Góes/UOL
Plataformas modulares, compartilhadas por veículos de qualquer porte e carroceria, representam uma das mais importantes soluções contemporâneas para reduzir custos
Imagem: Murilo Góes/UOL

Por que Google e Apple desistiram

Veja o exemplo da Volkswagen no Brasil: investiu R$ 2,6 bilhões (ou US$ 800 milhões) só para desenvolver e adaptar a linha de montagem de São Bernardo do Campo (SP) à nova matriz modular MQB A0, que dará origem à sexta geração do Polo, ao sedã Virtus, ao SUV compacto T-Cross e a uma picape. E olha que não estamos falando de uma plataforma inédita, mas de adaptação da MQB original, que já dava origem ao Golf e ao Audi A3 no Paraná, em outra unidade do grupo. 

É devido a essa enorme complexidade que duas gigantes de tecnologia, Apple e Google, desistiram da ideia de criar carros próprios e decidiram se tornar apenas parceiras das fabricantes tradicionais no desenvolvimento de tecnologias para a condução autônoma.

"A velocidade de criação de um gadget é muito maior que a de um automóvel e os riscos, bastante menores. Esse é o grande desafio da indústria automotiva: tornar o ciclo de desenvolvimento mais veloz e eficiente", analisou Ricardo Bacellar, diretor da consultoria empresarial KPMG Brasil, durante encontro com jornalistas este ano.

É também por isso que cada vez mais montadoras concorrentes têm atuado em alianças para desenvolver tecnologias que sirvam a todas. Quer um exemplo? a utilização da mesma base para as novas Nissan Frontier, Renault Alaskan e Mercedes-Benz Classe X. A Nissan precisava renovar sua picape clássica urgentemente, com maior refinamento e tecnologia, mas não tinha dinheiro. Renault e Mercedes-Benz enxergavam um filão importante no segmento de picapes médias, mas não tinha tempo (nem verba) para produzir um modelo do zero. A solução veio com franceses e alemães dividindo custos com japoneses: o projeto é um só, mas cada fabricante colocou sua "cara" e um ou outro diferencial em sua picape.

Voltando ao caso de Apple e Google: a primeira ainda não definiu sua estratégia, mas o Google criou a divisão Waymo, que fornece tecnologia para carros criados pela FCA (Fiat-Chrysler), que também nunca teve tempo, dinheiro ou interesse para criar carros conectados e autônomos por conta. 

Ratear custos tornou-se algo cada vez mais essencial (e economicamente inteligente).

Asiáticas pisam no acelerador 

Dois países em especial têm seguido à risca a cartilha de acelerar o processo de desenvolvimento reduzindo custos: Coreia do Sul e China. O primeiro foi responsável por reduzir substancialmente o ciclo de desenvolvimento de cinco/seis para o atual patamar médio de três a quatro anos, graças especialmente ao grupo Hyundai-Kia.

Já o segundo, atual colosso da indústria automotiva mundial, aproveita leis trabalhistas menos rígidas (salários até 50% menores e cargas horárias bem mais extensas que as de países com legislação mais consolidada) e da extrema competitividade em confecção de matérias-primas (por lá é possível produzir moldes de peças automotivas pela metade do preço cobrado na Europa) para tirar do forno um veículo novinho custando até US$ 300 milhões.

"Enquanto um engenheiro brasileiro custa R$ 16 mil para uma montadora, somando salário e encargos, e trabalha 44 horas semanas, um chinês custa R$ 8 mil e trabalha 60 horas numa semana", calcula Sergio Habib, presidente do grupo SHC, responsável pela importação de carros da JAC no Brasil.

Mais importante é que, aos poucos, os chineses estão conseguindo aliar agilidade e contenção de custos à qualidade. Não é à toa que algumas gigantes sediadas na Europa e nos Estados Unidos estão trabalhando em parceria com chineses para a formulação de futuros projetos, principalmente voltados a mercados emergentes. Habib estima que um terço de todos os carros desenvolvidos atualmente no mundo já possui algum tipo de conexão com a China.

No caso do Brasil temos como exemplo a General Motors, que está criando a plataforma de sua nova família brasileira de compactos (prevista para 2020), denominada GEM, em conjunto com a SAIC. Já a Peugeot-Citroën vai usar base da Dongfeng para os próximos compactos feitos em Porto Real (RJ).

Mosaico dos hatches compactos brasileiros - Arte UOL Carros - Arte UOL Carros
Carros de um mesmo segmento estão cada vez mais parecidos. Coincidência? Falta de criatividade? Não: é medo de faze algo muito diferente e que não será aceito pelos consumidores
Imagem: Arte UOL Carros

É caro, arriscado? Ouse pouco 

É por isso que muitas vezes o mercado de automóveis se mostra um tanto "repetitivo" e conservador: tamanha dedicação de tempo e dinheiro faz com que as fabricantes tenham medo, muito medo, de arriscar demais e não conseguir transformar o investimento em vendas. A solução, quase sempre, acaba sendo seguir as tendências de sucesso.

Por que você acha que os hatches compactos brasileiros são tão parecidos? Onix parece HB20, que lembra o Ka -- e todos se assemelham ao Gol G5. E por que todas as montadoras apostam tudo em SUVs? Tudo faz parte de uma estratégia protocolar: minimizar os riscos de prejuízo. Ser precursor ou vanguardista sai caro.

Uma marca até pode dar "sorte" de desbravar um nicho que imediatamente será bem aceito pelo mercado, algo que a Ford conseguiu com o primeiro EcoSport no Brasil, por exemplo. Só que, por vezes, ela terá de ter paciência e "segurar o rojão" até que o modelo vire rentável, caso do Toyota Prius -- o híbrido existe há quase duas décadas e só agora se estabeleceu como modelo de bom volume em mercados como Japão, Europa, EUA e até Brasil (dentro das proporções).

O problema é que nem todas as marcas têm reserva financeira para esperar tanto tempo até que um produto seu engrene. Muitas dependem de sucesso imediato e, por isso, acabam preferindo surfar ondas conhecidas e tranquilas.