Gênios ou malucos? Eles transformaram Gol, Gurgel e Fusca em elétricos
Especial - UOL Carros: como é ter carro elétrico no Brasil
Veículo elétrico é item ainda raro no Brasil, com poucos modelos à venda e preços elevados, muito por conta da alta carga tributária e da falta de política de incentivos fiscais para sua compra.
No Brasil, já existe um grupo de entusiastas que resolveram ter seu carro movido a baterias feito, literalmente, em casa, a partir da conversão de automóveis com motor a combustão.
UOL Carros está contando histórias de quem que, apesar da falta de incentivos, falta de estrutura, falta de interesse de fabricantes e preços elevados, tenta colocar a roda da mobilidade elétrica para girar. Desta vez, vamos mostrar como "criar" um elétrico por conta requer, além de conhecimento técnico, enfrentar muita burocracia e gastos para regularizar o veículo, alterando o documento junto ao órgão de trânsito, informando de que se trata de um carro movido a baterias.
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Há pouco apoio à prática. A Abravei (Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores), inclusive, tenta apresentar um projeto para normatizar a conversão, com certificação de órgãos de segurança e aval das montadoras, a ser apresentado ao Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) e ao MDIC (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços). Mas isso ainda está em passo inicial.
"O objetivo do projeto é homologar uma rede de oficinas certificadas, com linha de crédito para bancos estatais e privados financiarem a modificação, assim como o projeto de conversão a GNV. Acredito que vamos apresentar a proposta em seis meses", afirma Edgar Escobar, presidente da associação.
Quem fez, como fez?
O militar e engenheiro de computação Elifas Gurgel começou a tomar interesse pelos carros elétricos há cerca de dez anos por conta da premissa da "emissão zero de poluentes". Começou a pesquisar o assunto na internet e decidiu montar seu próprio veículo movido a baterias, usando como base um Gol G4 2009 que comprou zero-quilômetro em Brasília (DF).
Mal sabia os desafios que teria. "Levei quatro meses para fazer a conversão em 2009 com peças importadas, como motor, controlador, carregador, bomba de vácuo para os freios e as baterias, que foram o mais caro. Gastei cerca de R$ 60 mil, mas minha intenção era usar o carro no dia a dia, regularizado, rodando em vias públicas", relata Gurgel.
O processo de homologação levou quase seis anos até a entrega do documento atualizado, em 2015. Na época, o CTB (Código de Trânsito Brasileiro) já previa o registro de veículos elétricos no país, porém não havia regulamentação para a "transformação".
"Por minha iniciativa, o Denatran publicou a Portaria 279/10 em abril de 2010, a primeira a tratar sobre o tema, autorizando a homologação de automóveis, camionetas, caminhonetes e utilitários convertidos para tração elétrica", afirma Gurgel.
Para isso, foi preciso abrir processo administrativo na Câmara Temática de Assuntos Veiculares do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) que acabou provocando a publicação da portaria original, já atualizada por outras mais recentes. "Fiz uma apresentação, detalhando todos os componentes e desenhos técnicos que utilizei".
Foi aprovado um documento liberando a transformação, mas esta só pode ser feita por pessoa jurídica (empresa) homologada no Denatran e acreditada pelo Inmetro, com certificado de capacitação técnica concedido pelo órgão nacional de trânsito.
A abertura da empresa deu início à homologação de fato, apresentando o projeto detalhado da conversão, que acabou sendo aprovado após longa espera. Na época, o Denatran exigiu que a conversão incluísse instalação de airbags dianteiros e freios ABS, itens obrigatórios desde 2014. "Tive de comprar os componentes, fazer a instalação e contratar uma empresa terceirizada para fazer o teste de frenagem exigido. Além do gasto de R$ 60 mil da conversão, paguei R$ 5 mil no processo burocrático e R$ 3 mil com os itens de segurança, mesmo que a lei só obrigue a instalação em carros fabricados a partir de 2014", afirma.
Burocracia confirmada
Consultado pela reportagem, o Denatran informou que, segundo artigo 106 do CTB e artigo 3º da Resolução 292 do Contran, uma modificação nas características originais do veículo o proprietário precisa de autorização do Detran de onde o veículo foi emplacado. Apenas após a obtenção dessa autorização prévia o proprietário pode realizar a modificação, sendo necessária inspeção de segurança veicular a fim de comprovar a regularidade e segurança da nova configuração, por meio do CSV (Certificado de Segurança Veicular) expedido por ins tituição técnica licenciada e acreditada pelo Inmetro.
Se o motorista for flagrado com documento irregular, está sujeito a retenção do veículo para regularização, mais multa de R$ 195,23 e cinco pontos na habilitação por infração grave.
O documento do carro de Gurgel atesta que se trata de um veículo elétrico transformado, vencendo todos esses percalços. Considerando todos os gastos, foram quase R$ 70 mil, quase três vezes o valor pago originalmente pelo Gol (cerca de R$ 25 mil) e mais de 40% do preço de um BMW i3 novo (que custava R$ 160 mil até meados do ano passado, quando saiu de linha).
Todo o trâmite enfrentado por Elifas Gurgel, porém, criou um caminho que o libera a converter não só esse Gol, mas quantos Gol elétricos ele quiser. Mas terá de iniciar novo processo de homologação, se quiser transformar outro modelo em carro elétrico.
Sua experiência rendeu até livro, chamado "Como Converter o seu Carro para Elétrico", produzido de forma independente e que tem toda a narrativa da saga, descrição de componentes e desenhos técnicos.
"Me considero um pioneiro. Esse conceito de dar nova vida a um veículo, especialmente os mais antigos, convertidos em carros com emissão zero, é empolgante. Mas hoje é financeiramente inviável em pequena escala, especialmente em relação às baterias de íons de lítio, que encomendei da China por US$ 200 cada célula, somando US$ 8.000 para os 40 módulos que instalei. Acabei pagando o dobro com todos os impostos de importação, que não tiveram nenhum abatimento, mais taxas aduaneiras", explica.
Vantagem? Segundo Gurgel, os valores seriam ainda maiores atualmente: "A mesma célula de bateria chega a custar US$ 230, está mais cara".
Gurgel usa o Gol no dia a dia, rodando exclusivamente em vias urbanas, geralmente em terceira marcha, suficiente para vencer subidas íngremes por conta do alto torque do motor elétrico DC -- o câmbio é original e ele só usa a quarta marcha em velocidades acima de 70 km/h. A recarga é feita em casa, em uma tomada comum de três pinos e 15 amperes, e a autonomia é de cerca de 150 km.
Tudo reciclado
"Não é preciso gastar tanto assim", afirma Alfredo Correia, funcionário público de Salvador (BA), que decidiu converter dois Gurgel Supermini -- um prata e um branco, ambos 1994. Para isso, utilizou baterias de laptop, motor de empilhadeira e outros componentes que seriam "descartados".
Correia dirige há um ano seu Gurgel com baterias e peças que iriam para o lixo. "A ideia das baterias de laptop surgiu de um vídeo que vi na internet de um norte-americano que as utilizou para aumentar a voltagem de um pacote de baterias que ele já dispunha. Consegui um fornecedor local que trabalha com reciclagem de materiais tecnológicos e também parceria com uma empresa que faz manutenção dos computadores, tudo de graça", revela.
Ele começou o projeto em 2007 e só terminou na virada de 2014 para 2015, equipando o primeiro com motor de esteira de ginástica -- o segundo traz motor de empilhadeira elétrica. A opção pelo Gurgel é por conta do baixo peso, em torno de 650 kg. Os motores também são fornecidos por ferros-velhos.
Correia diz que sempre se interessou por tecnologia e eletrônica, mas não tem formação técnica formal. O primeiro contato com o assunto foi na adolescência, quando trabalhou em uma empresa em equipamentos de som para trios elétricos. Depois, trabalhou com montagem de equipamentos de segurança, como interfones e portões automáticos. Mais tarde, instalou alarmes contra incêndio.
Na base da transformação, a retirada de motor, câmbio e de outros componentes para trocá-los pelo trem de força 100% elétrico. Correia diz ter gastado cerca de R$ 5 mil no motor, controlador e em outros componentes, mas afirma que as baterias custariam entre R$ 25 mil e R$ 30 mil se fossem trazidas de fora.
Com o uso do material reciclado, o gasto foi extremamente mais baixo -- parte das baterias é doada, parte comprada a quilo. "Preciso de cerca de 200 kg de baterias de lítio de notebooks para montar o carro, pagando de R$ 5 a R$ 20 por quilo", conta. Por cima, o gasto "bruto" é de R$ 9 mil.
Os componentes do motor combustão retirados do carro foram vendidos, reduzindo ainda mais os custos, mas ele teve de terceirizar alguns serviços e comprar ferramentas. Correia primeiramente desmonta as baterias e as testa para ver se ainda têm condições de serem utilizadas. Cada uma tem voltagem de 4,2 volts quando totalmente carregada.
Correia ainda usou baterias para aumentar a capacidade original de seu scooter elétrico, um Kasinski Prima Electra. Tentou com baterias de chumbo, mas elas são pesadas e retêm menos carga -- um pack de chumbo pesava 250 kg, contra 60 kg do mesmo pacote de baterias feito com tecnologia de íons de lítio.
No caso dos Gurgel Supermini, o carro adaptado utiliza cerca de 200 baterias divididas em seis células, com autonomia de até 100 km com uma carga completa -- ele recarrega na garagem de casa, em tomada. "Acredito que se Salvador não tivesse tantos morros e ladeiras, o alcance seria maior. Dirigir sem subir é impossível", conta.
Correia usa o carro apenas na cidade e "diariamente". Segundo ele, o Gurgel é equipado com câmbio de cinco marchas e tração traseira e pode atingir 90 km/h "embalado". Usa praticamente a quarta marcha. "Marchas mais altas exigem menos do motor e reduz o gasto de energia, ainda mais em uma cidade bem cheia de ladeiras".
Sua família também tem carro a combustão, um Renault Sandero, usado por sua esposa. "Uso o Sandero ocasionalmente, mas dá uma dor ao abastecer, com o preço que a gasolina está".
Tem até Fusca
Aline Gonçalves, engenheira eletricista e dona de uma empresa de painéis fotovoltaicos em Vila Velha (ES), está adaptando um Fusca 1972 para rodar apenas com baterias. "Percebi que há pouquíssima oferta ou quase inexistente no Brasil e os carros disponíveis possuem preços muito acima da realidade da da população", relata.
Para definir o modelo do carro, buscou exemplos no Brasil e no exterior de veículos transformados em elétricos -- o Fusca é um carro com baixo custo de investimento e mecânica fácil de mexer. Quem a ajudou no projeto foi justamente o baiano Alfredo Correia.
"O objetivo era manter o menor custo possível com a melhor performance em tecnologia de baterias para veículos elétricos. Todas os componentes elétricos são reutilizados, encontrados no Brasil, e somente as baterias foram importadas, com investimento de R$ 27 mil".
Segundo a engenheira, a transformação foi finalizada recentemente e os componentes do motor a combustão ainda estão na oficina. "O veículo vai iniciar os testes de rodagem agora e começar o processo de homologação, que terá custo adicional", relata. Ela estima autonomia de 50 km e velocidade máxima de 50 km/h. "O Fusca será utilizado em vias urbanas e para o dia a dia", avisa. É o bastante.
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