Área pública vira pista ilegal para aceleradas de Razuk e disputa de rachas
Um terminal de cargas cuja construção teve início há mais de dez anos na Região Metropolitana de Campo Grande (MS), mas até hoje não foi concluída, virou pista clandestina para a disputa de rachas e gravação de vídeos com youtubers acelerando.
O local é conhecido como Porto Seco e fica ao lado do anel viário que conecta a capital sul-mato-grossense com Sidrolândia e São Paulo.
Sem contar com portão nem equipes de vigilância, a área, pertencente à Prefeitura de Campo Grande, tornou-se alternativa para quem gosta de pisar fundo e não pode ou não quer alugar um autódromo.
No ano passado, o motorista de um Chevrolet Chevette capotou o carro no local enquanto fazia manobras ilegais, "queimando borracha".
Mais recentemente, o youtuber Eduardo Rezende da Silva, o Eduardo Razuk, escolheu o Porto Seco para realizar testes de aceleração com seus carros. Nessa via, utilizando um aparelho GPS para medir a velocidade máxima e a distância percorrida, ele chega a mais de 200 km/h com seus carros em alguns dos vídeos.
Nas gravações, feitas ao entardecer e à noite, ele diz que se trata de uma estrada "particular" e "fechada". Segundo Razuk, ele passou a gravar no Porto Seco com maior regularidade por buscar um local mais seguro para suas aceleradas. Isso ocorreu após vídeos do youtuber andando acima do limite de velocidade em vias públicas chamarem a atenção das autoridades.
O youtuber do canal "Backstage" tornou-se alvo de dois inquéritos da Polícia Civil, abertos no mês passado. Ele é investigado por furar o toque de recolher em Campo Grande e pela receptação de um Toyota Corolla, supostamente contrabandeado do Paraguai. Ele chegou a ser preso em flagrante por esse motivo, mas foi solto no mesmo dia após pagar fiança de R$ 20 mil.
Prefeitura promete maior fiscalização
A Prefeitura de Campo Grande, a PRF (Polícia Rodoviária Federal) e especialistas em legislação de trânsito afirmam que o Porto Seco é uma via pública, sujeita a fiscalização pelas autoridades competentes.
A gestão municipal, inclusive, informa que vai intensificar ações para coibir o uso do local para acelerar veículos e praticar crimes e infrações de trânsito.
"A estrada vicinal que dá acesso ao Porto Seco está localizada entre o minianel de São Paulo e Sidrolândia - neste trecho cabe à Policia Rodoviária Federal a fiscalização. Já se estiver dentro do Porto Seco, é competência do Município e do Estado de Mato Grosso do Sul. No entanto, na região não há tráfego de veículos", diz nota enviada a UOL Carros.
A Prefeitura complementa, dizendo que "nos próximos dias, a Polícia Metropolitana Municipal, em parceria com as polícias rodoviárias Estadual e Federal, vai fazer uma força-tarefa para monitorar e fiscalizar o local para tentar fazer um flagrante. Além disso, vamos tomar todas as providências dentro da lei e a aplicação do CTB [Código Nacional de Trânsito]".
Marco Fabrício Vieira, conselheiro do Cetran-SP (Conselho Estadual de Trânsito de São Paulo) e autor do livro "Gestão Municipal de Trânsito", também cita o CTB para esclarecer que a via em questão não poderia ser utilizada para gravações como as de Eduardo Razuk.
"Se é uma via terrestre, ainda que meramente vicinal, está sujeita às normas do CTB, notadamente quanto à velocidade permitida. Caso essa sinalização não exista [como é o caso], deve-se observar a velocidade prescrita no Artigo 61, que é de até 80 km/h, no caso de uma via de trânsito rápido", pontua o especialista.
'Vou correr em autódromo'
Procuramos o youtuber, que inicialmente manteve o discurso de que está realizando as gravações em alta velocidade em ambiente privado. Em seguida, a reportagem informou que o local é da Prefeitura e questionou se Razuk teria autorização para utilizá-lo, o que ele não respondeu.
Lucas, seu companheiro e parceiro na produção dos vídeos do canal, então admitiu a possibilidade de os dois não mais acelerarem nessa estrada.
"Foge ao nosso conhecimento de que aquela via do Porto Seco é uma via pública, sujeita a fiscalização da polícia. Por que, se você entrar no Google Maps, por exemplo, ou qualquer outro satélite, lá não existe logradouro. Não vejo problemas, mas se tiver, a gente está disposto, como o Eduardo tem dito nos vídeos dele, a mudar o comportamento dele", destaca Lucas.
"Essa é uma medida paliativa [usar o Porto Seco]. Eu já conversei com o dono do autódromo internacional de Campo Grande, o Orlando Moura, e já foi concedida para mim a autorização para começar a usar o autódromo. A partir da semana que vem, as gravações passarão a ser dentro de autódromo. Tudo isso estou fazendo para o quê? Justamente para fazer o certo e não o errado", complementou Silva.
Também entramos em contato com Marlon Ricardo Lima Chaves, advogado de Razuk, que mantém a argumentação de que seu cliente não comete infrações em vias públicas.
"Quanto aos supostos vídeos em "altas" velocidades, não existe qualquer publicação no Youtube, Instagram ou qualquer rede social relacionada a desrespeito às normas de trânsito. Ao contrário, todos os vídeos que demandam aceleração veicular são gravados em locais privados e com todos os cuidados de segurança, ou seja, sem qualquer desrespeito a legislação, que apenas vale para vias públicas".
No entanto, até ontem o canal "Backstage" mantinha vídeos recentes nos quais Razuk dirige acima do limite de velocidade fora da estrada vicinal do Porto Seco.
Em 26 de abril passado, nove dias após ser preso, o youtuber postou conteúdo no qual conduz um Fiat Uno a 130 km/h em uma rodovia com limite de 80 km/h.
No dia 14 de maio, ele acelera seu BMW 118i, que diz ter sido doado recentemente por um inscrito anônimo do seu canal, a 100 km/h nas ruas de Campo Grande - o trecho no qual ele atingiu essa velocidade, que pode ser comprovada observando o velocímetro do veículo, o limite é de 50 km/h.
Conversamos com Valério Azambuja, secretário de Segurança Pública de Campo Grande, cuja secretaria produziu um dossiê sobre o "youtuber" e protocolou denúncia à Polícia Civil após Razuk desrespeitar o toque de recolher na cidade.
"Desde então, o Eduardo já mudou o tom das postagens, porém estamos acompanhando suas movimentações pela cidade. Mas, se for preso novamente em flagrante, possivelmente não vão arbitrar fiança", salienta.
Campanha quer tirar vídeos do ar
Os vídeos de youtubers acelerando acima do limite de velocidade geraram movimentações da sociedade para coibir e até criminalizar postagens de infrações e crimes de trânsito nas redes sociais.
Esta semana, a FenaPRF (Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais), em conjunto com o programa SOS Estradas, lançou a campanha "Não Dê Like, Denuncie!", incentivando a população a denunciar postagens com "exibicionismo de crimes de trânsito em redes sociais".
A campanha traz até um passo a passo de como denunciar o conteúdo, na expectativa de retirá-lo do ar.
A entidade também enviou notificação extrajudicial pedindo a remoção de vídeos e dos canais de Razuk e outros youtubers ao Google, dono do YouTube.
"Vamos ingressar com uma ação judicial contra o Google, requerendo a retirada do material do ar. Quanto à campanha, a intenção é conscientizar as pessoas a não apoiarem esse tipo de atitude, que tem consequências nefastas e incitam jovens a fazerem o mesmo".
Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas e fundador de entidades de vítimas de trânsito, complementa.
"O comportamento desses condutores, que são potenciais assassinos do trânsito, que veiculam crimes de trânsito e são remunerados por isso, são a prova concreta de que temos uma fábrica de infratores que vive da impunidade", critica.
De acordo com Rizzotto, "se tivéssemos uma indústria da multa, como alega o presidente da República, esses jovens já teriam perdido a CNH há muito tempo".
"Eles geram receita para plataformas como o Google. É o máximo da impunidade com benefício da remuneração. O infrator é remunerado pelas infrações e pelos crimes de trânsito", complementa.
Procurado, o Google manteve posicionamento enviado anteriormente à reportagem:
"O YouTube é uma plataforma de vídeo aberta e qualquer pessoa pode compartilhar conteúdo, que está sujeito a revisão de acordo com as nossas diretrizes da comunidade. Qualquer usuário que acredite ter encontrado uma violação de nossas políticas pode fazer uma denúncia e nossa equipe fará a análise do vídeo. Quando não há violação à política de uso do produto, a decisão final sobre a necessidade de remoção do conteúdo cabe ao Poder Judiciário, de acordo com o que estabelece o Marco Civil da Internet".
Projeto quer criminalizar postagens
Outra iniciativa contrária a esse tipo de conteúdo é Projeto de Lei 130/2020, de autoria da deputada federal Christiane Yared (PL/PR)
O texto propõe que os vídeos postados nas redes sociais sirvam como prova, além de prever penas mais duras aos infratores, bem como a penalização das empresas que veiculam esse tipo de material.
"Na lei atual, a infração só é válida se for lavrada por um agente de trânsito ou partir de um radar. Com a aprovação do projeto, os vídeos passariam a valer como prova e as redes sociais seriam obrigadas a retirar o material do ar, sob pena de serem penalizadas" diz a parlamentar ao UOL Carros.
A deputada é mãe de Gilmar Rafael Souza Yared, que morreu em 2009 na cidade de Curitiba (PR) em acidente provocado pelo então deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho (PSB), que estava a alta velocidade e apresentava indícios de embriaguez. Outro jovem também perdeu a vida na batida. Condenado, Carli Filho hoje cumpre prisão domiciliar.
Segundo Christiane Yared, o projeto de lei estabelece a suspensão do direito de dirigir por um ano, ampliado para dois anos em caso de reincidência. Se o infrator não for habilitado, fica impedido de tirar a CNH (Carteira Nacional de Habilitação). As penalidades para as redes sociais, informa, ainda estão em debate.
"Esses 'influenciadores' em geral são muito jovens e acham que estão acima da lei, colocando em risco a própria vida e a de outras pessoas. Querem fama, poder e dinheiro. Alguns sentem-se superiores e têm a sensação de que não vão perder a vida. Dá certo uma, duas, três vezes, mas um dia pode dar errado", opina.
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