Ferrari rara abandonada em SP traz história de separação entre pai e filho
No começo deste mês, UOL Carros contou a história da Ferrari Dino 208 GT4 1975 apreendida em 2004 que enferruja em um pátio da Prefeitura de Santo André (SP) há pelo menos dez anos.
Trata-se do único exemplar deste ano e modelo emplacado no Brasil, que apodrece exposto ao sol e à chuva sem poder ser vendido nem como sucata - o esportivo italiano está bloqueado judicialmente, aponta consulta ao Detran-SP (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo).
No entanto, essa Ferrari enferrujada é muito mais do que um veículo raro deixado para apodrecer: ela simboliza uma das últimas lembranças materiais que um filho tem do pai, do qual passou a maior parte da vida afastado.
O empresário Bruno Danilo Richter Lazar, de 34 anos, morador de São Paulo (SP), é filho de Ferry Lazar - que comprou a Dino 208 GT4 em 1985 e faleceu em 2014.
Emocionado, Bruno conta que a reportagem de UOL Carros trouxe de volta um turbilhão de emoções envolvendo o relacionamento distante com o pai - que conheceu apenas com quatro anos de idade.
Ele relata que "nunca teve interesse em nada que viesse de herança", mas hoje sonha recuperar um dia o veículo que era o "xodó" de Ferry Lazar, nascido na Romênia e cuja família, de ascendência judaica, radicou-se no Brasil após a Segunda Guerra Mundial.
"Machuca muito essa história. Isso faz relembrar muitas coisas que a gente passou e deixou de passar. Eu aguentei até onde pude. Foram seis anos sem querer saber de nada disso", conta.
Bruno relata que o convívio com o pai era esporádico e os dois se viam "no máximo" duas vezes por ano. Seus pais nunca foram casados e ele acredita ser o único filho de Lazar.
"Nunca vivemos juntos, isso era um sonho na época para mim. Isso fez com que me afastasse porque não conseguia conviver em família com ele, não conseguia ter esses momentos" diz o empresário.
Interessado pelo carro avisou sobre morte
Foi inclusive por conta da Ferrari que ele soube da morte do pai, em 2018, quase cinco anos após seu falecimento.
"Foi um choque para mim. Soube da morte dele através do carro. Uma pessoa veio querendo comprá-lo, mandou mensagem no Facebook e disse que meu pai já tinha falecido. Nesse mesmo dia, consegui confirmar por conta própria ao descobrir a certidão de óbito em um cartório perto de onde ele morava, em Santana [bairro da Zona norte da capital paulista]", relata, com a voz embargada.
Bruno conversou pela última vez com Ferry cerca de quatro meses antes da sua morte pelo WhatsApp. Depois disso, suas mensagens não tiveram mais resposta, até que a foto vinculada ao número de telefone foi trocada pela imagem de um desconhecido.
"Nunca me despedi dele. Fica esse sentimento bem nítido, bem ruim [choro]".
Agora, aos 34 aos, ele sente que finalmente deixou a mágoa para trás.
"Eu tinha uma percepção de que ele era um exemplo ruim de pai porque não ligava no aniversário, não ia visitar, não me pegava na escola. Porém, agora, dentro de mim, eu não falo mais que não tinha pai".
Ele considera Ferry, engenheiro de formação, um gênio incompreendido.
Bruno relembra a participação do pai no programa "Ídolos" (SBT), quando ele foi reprovado pelos jurados ao cantar uma versão da música "Surfin' Bird", há quase 15 anos.
"Ali a gente vê as sequelas que uma série de internações em manicômios públicos por opção da família dele. A gente não concordava com isso. Eles tratavam o Ferry como um louco, mas na verdade ele era uma pessoa acima da média. O QI dele era absurdamente alto", opina.
Ele conta que o pai "mandava teorias para a Nasa", fazia projetos de aeromodelismo e chegou a ser condecorado por projetar um aeromodelo "que atravessou Israel de ponta a ponta".
Passeio de Ferrari na Paulista
Dentre as lembranças que Bruno guarda está o passeio que fez com o pai a bordo da Ferrari na Avenida Paulista há mais de 20 anos, quando era adolescente.
Ele relata não ter fotos do veículo.
"Foi a última vez em que vi o carro andando, praticamente novo, com tudo funcionando. Ele ficou com a Ferrari parada durante anos atrás de peças. Tinha uma que quebrou e demorou muito tempo para chegar. O carro era azul, um azul bem escuro, forte", recorda.
Segundo registro da Polícia Civil, em 2002 Ferry Lazar levou a Dino 208 GT4 azul para reparos em uma oficina. Ao retornar, o estabelecimento tinha fechado e o carro, desaparecido.
No ano seguinte, o romeno conseguiu localizar o cupê, porém com pintura amarela e registrada no nome de um terceiro. Lazar apresentou denúncia à polícia e, durante as investigações, constatou-se que o veículo tinha sido adquirido no Paraguai sem recolher os impostos e as taxas de importação. Além disso, o chassi teria sido adulterado.
Por conta dessas irregularidades, a polícia apreendeu a Ferrari em 2006 e ela nunca mais foi recuperada. O caso rendeu pelo menos dois processos na Justiça. Tanto Ferry quanto a pessoa que se dizia dona do carro, um colecionador do interior paulista, morreram sem que houvesse uma definição sobre o destino do esportivo.
"Quando a Ferrari desapareceu, meu pai ficou louco. Isso acabou matando ele também. Era o xodó dele. Quando sumiram com o carro, ficou anos procurando. Quando encontrou, começou essa luta".
Resgatar Ferrari é sonho
Bruno afirma que nunca recebeu herança do pai e até recentemente não procurou se informar sobre a possibilidade de resgatar a Dino abandonada.
Porém, reconsiderou a ideia.
"Nunca fui atrás, não era do meu interesse. Até a sua matéria sair, eu não tinha esse interesse. Comecei a refletir sobre essa possibilidade. A Ferrari é o último bem material que restou dele, mas não tenho condições financeiras de tirar o carro de lá".
Conforme a Prefeitura de Santo André, somente as diárias após tantos anos no pátio requerem o desembolso de mais de R$ 100 mil. Especialistas afirmam, ainda, que a restauração completa da Dino abandonada pode custar mais de R$ 1 milhão.
O empresário conta que, após a publicação da reportagem de UOL Carros, recebeu o contato de pessoas dispostas a ajudá-lo.
"Tem advogado querendo me auxiliar de graça, tem despachante se oferecendo a levantar todas as informações sem cobrar nada. Não é só a minha história ali. Aquele pátio, se você for ver, se revirar, eu aposto que tem muita história igual. Muito carro que está lá que talvez seja a última lembrança de alguém já falecido".
"Se meu pai estivesse aqui hoje, tenho certeza de que iria ajudá-lo a retirar, por mais difícil que seja. Ter esse carro de volta seria como ter meu pai perto de mim", conclui.
Caso o sonho se concretize, Bruno pensa que a Ferrari poderia ser vendida com fins filantrópicos. "Eu ficaria só com o volante de lembrança".
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