Peruca e gambiarra: o resgate frustrado da Ferrari que enferruja no ABC
O romeno Ferry Lazar morreu em 2014, aos 64 anos, sem conseguir reaver sua Ferrari Dino 208 GT4 1975, que enferruja em Santo André após ser apreendida em junho de 2006.
UOL Carros teve acesso ao boletim de ocorrência da apreensão e também conversou com Bruno Richter Lazar, filho de Ferry, para entender as circunstâncias nas quais o esportivo italiano foi deixado para apodrecer em um pátio da prefeitura do município do ABC paulista.
De acordo com o documento da Polícia Civil, a Ferrari foi apreendida em Santo André por suspeita de adulteração de chassi, após denúncia feita pelo próprio Ferry em 2006.
O boletim diz, com base em relato do romeno, que a Dino desapareceu em 2002, após ele deixar o veículo em uma oficina mecânica para reparos em fevereiro daquele ano. Algum tempo depois, ele retornou ao estabelecimento, que havia fechado, e não conseguiu mais contato com o dono do comércio.
Foi então que teve início a busca pela Ferrari sumida, que se estendeu por cerca de quatro anos - até Ferry localizar a 208 GT4 com nova pintura, registrada em nome de outra pessoa e com numeração de chassi e placas diferentes.
"Em 2006, meu pai descobriu a existência de uma Dino 208 GT4 1975 com pintura amarela, enquanto o carro dele tinha originalmente carroceria azul-escura. Ele estava convencido de que se tratava da sua Ferrari", diz Bruno, com base em relato do advogado do pai, que acompanhou toda a saga.
Conforme apuração da reportagem, só existe um exemplar do mesmo ano e modelo desse veículo emplacado no Brasil.
Segundo o filho, que hoje tenta retirar o cupê do pátio para reformá-lo, Ferry soube, por meio das próprias investigações, que a Ferrari estava estacionada no interior de uma fábrica, de propriedade do então novo "dono" do modelo italiano.
"Disfarçado com uma peruca e óculos escuros, ele começou a ir até a fábrica e fez amizade com o porteiro. Um dia, convenceu o funcionário a deixá-lo entrar, quando finalmente encontrou a Ferrari e chamou a polícia", conta Bruno, hoje com 34 anos.
Foi então que o Ferry e o novo "proprietário" foram parar no 1º DP de Santo André e a polícia apreendeu o carrro para perícia do Instituto de Criminalística.
Bruno diz, sempre com base no depoimento do advogado que representou seu pai, que em dado momento Ferry Lazar conseguiu provar que o automóvel lhe pertencia de fato.
"A polícia enviou uma carta à Ferrari na Itália, pedindo os dados do automóvel. Na resposta, os códigos do motor e do câmbio batiam com aqueles informados pelo meu pai. Só o chassi era diferente. Um perito removeu parte da pintura para verificar se a tinta azul permanecia sob a amarela, mas a cor original tinha sido totalmente removida".
A "prova dos nove", explica, foi uma gambiarra que o pai fez no velocímetro.
"Ao fazer o reparo, ele não tinha a peça original e improvisou com um parafuso muito específico. Ele contou isso aos policiais, que desmontaram o painel e encontraram o tal parafuso, confirmando a veracidade da história".
Bruno Lazar afirma que seu pai só não conseguiu resgatar a Dino porque ainda havia pendências quanto à importação ilegal. Ferry teria trazido o esportivo do Paraguai, cruzando a fronteira com o Brasil dirigindo o veículo e sem pagar os respectivos impostos e taxas.
"Na época, o valor devido era relativamente baixo. No entanto, ele havia sido interditado judicialmente pela família e não tinha acesso ao próprio dinheiro. O processo todo demorou muito e ficou mais doente ainda. Acabou morrendo sem ter a Ferrari de volta".
Resgate com a ajuda de Otávio Mesquita
Seis anos após a morte do pai, Bruno Lazar, dono de uma franquia de pizzas, decidiu tentar tirar a Dino do pátio onde segue exposta ao sol e à chuva para trazê-la à velha forma. De acordo com o Detran-SP (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo), o automóvel hoje está bloqueado judicialmente.
O primeiro desafio será conseguir a liberação do veículo - além da questão judicial, hoje a Dino 208 GT4 1975 acumula mais de R$ 100 mil a pagar apenas de diárias, informa a prefeitura.
Um advogado orçou em R$ 30 mil os serviços, conta o empresário.
"Até a reportagem de UOL Carros sobre essa Ferrari ser publicada no mês passado, eu não tinha interesse no carro. É um assunto difícil para mim e não tenho condição financeira. Mas passei a considerar essa possibilidade para resgatar a memória do Ferry Lazar. Nos víamos muito pouco e nosso último encontro foi em 1999, durante um passeio nessa mesma Dino, ainda azul, na capital paulista", pontua.
"Só soube da morte do meu pai quase cinco anos depois, justamente ao ser procurado por um interessado em comprá-la, que me deu a notícia", complementa.
Emocionado, Bruno diz que conheceu Ferry apenas com quatro anos de idade e, embora desejasse ter convivido mais com ele, os dois tinham pouco contato. Seus pais nunca foram casados.
Ele diz que recebeu o contato de interessados em ajudar na restauração.
"Já tenho parceria para fornecimento dos pneus, recuperação das rodas e serviço de funilaria. Acabei de conversar pelo telefone com o Otávio Mesquita, que se identificou com a história e disse que vai ajudar. Já pediu fotos do veículo e documentos para tentarmos liberá-lo", relata Bruno Lazar à reportagem.
Há cerca de três semanas, durante uma entrega de pizza na residência de Mesquita, no Morumbi, Bruno Lazar teve a chance de conhecê-lo e contar pessoalmente a história da Ferrari deixada para apodrecer.
O apresentador confirma a conversa e a intenção de colaborar.
"Já tinha visto as reportagens. Ferrari é Ferrari e esta deveria estar exposta, é um patrimônio automotivo brasileiro. Acho que a Justiça deveria levar em consideração o valor histórico desse carro, após resolver todas as pendências, claro", afirma Mesquita, de 60 anos.
A Dino mantém motor e câmbio, bem como volante e todos os itens de acabamento interno, nas durante todo esse tempo os carburadores foram roubados. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, o restauro da Ferrari deixada para enferrujar pode custar mais de R$ 1 milhão.
História de separação entre pai e filho
O herdeiro da Dino 1975 viu a Ferrari ao vivo no pátio da prefeitura pela primeira vez no começo deste mês, em reportagem do "Balanço Geral", da TV Record.
"Foi emocionante. Senti como se meu pai, que gostava tanto desse carro, estivesse enterrado ali. Ele traz muitas lembranças".
Ele relata que "nunca teve interesse em nada que viesse de herança", mas sonha em ver o veículo recuperado.
"Eu e meu pai nunca vivemos juntos, isso era um sonho na época para mim. Isso fez com que me afastasse porque não conseguia conviver em família com ele, não conseguia ter esses momentos" diz.
"Eu tinha uma percepção de que ele era um exemplo ruim de pai porque não ligava no aniversário, não ia visitar, não me pegava na escola. Porém, agora, dentro de mim, eu não falo mais que não tinha pai".
Bruno considera Ferry um gênio incompreendido e relembra a participação do pai no programa "Ídolos" (SBT), quando ele foi reprovado pelos jurados ao cantar uma versão da música "Surfin' Bird", há quase 15 anos.
"Ali a gente vê as sequelas que uma série de internações em manicômios públicos por opção da família dele. Eu não concordava com isso. Eles tratavam o Ferry como um louco, mas na verdade ele era uma pessoa acima da média. O QI dele era absurdamente alto", opina.
Ele conta que o pai, engenheiro mecânico, "mandava teorias para a Nasa", fazia projetos de aeromodelismo e chegou a ser condecorado por projetar um aeromodelo "que atravessou Israel de ponta a ponta". A família de Ferry Lazar tem origem judaica.
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