Como brasileiro virou peça-chave em fatiamento de navio com 4 mil carros
A complexa e perigosa operação de fatiamento do navio MV Golden Ray, tombado em 8 de setembro de 2019 com uma carga de aproximadamente 4,2 mil carros zero-quilômetro na costa da Geórgia (EUA), tem um brasileiro desempenhando função estratégica.
Único integrante nascido no Brasil de uma equipe de 400 pessoas, o brasiliense João Guilherme Ferreira Alves, de 39 anos, é o piloto de helicóptero encarregado de monitorar de cima todo o trabalho de remoção do cargueiro de 200 m de comprimento.
Em entrevista exclusiva para UOL Carros, Alves esclarece que desempenha o papel de "first responder", ou seja, é a primeira pessoa treinada a chegar diariamente a uma situação de emergência - no caso, o local do naufrágio, próximo ao porto de Brunswick, entre as ilhas de Saint Simons e Jeckyll, no litoral sul da Geórgia.
"Minha função mais importante a bordo do helicóptero é não deixar para trás nenhum destroço, óleo ou outras substâncias resultantes do corte do navio que possam causar dano ambiental", explica o brasileiro, que reside nos Estados Unidos de forma ininterrupta desde meados de 2016.
Ele é funcionário de uma empresa de fretamento aéreo sediada em Atlanta, Geórgia, que presta serviço para a remoção do MV Golden Ray.
Além de apontar a localização de eventuais destroços, que incluem partes dos automóveis destruídos no interior da embarcação, João Guilherme subsidia com informações a equipe que permanece em solo ou no entorno do navio.
"Os sobrevoos são um componente crucial para nosso sistema de monitoramento e coordenação, que utiliza múltiplas camadas de proteção ambiental e mitigação de poluição para resguardar o meio ambiente e garantir a segurança de nossa equipe e do público em geral", complementa o comando do resgate, a respeito das atribuições de Alves.
O brasileiro conta que ele e os colegas estão em regime de plantão durante todos os dias da semana e permanecem em isolamento para prevenir o contágio pelo coronavírus, usando máscara e seguindo os protocolos sanitários. Por conta dos desafios da operação, não há previsão de quando os trabalhos serão concluídos.
O corte da proa, a seção dianteira do MV Golden Ray, foi concluído em 26 de novembro, após 22 dias de esforços. Os trabalhos para remover a popa, parte traseira da embarcação, e a segunda de oito fatias, tiveram início três dias atrás, precedidos por um período de ajustes e planejamentos.
O navio-guindaste VB 10.000 é encarregado de fatiar o cargueiro, utilizando uma corrente de âncora, e de içar as fatias gigantes antes de seu transporte até a terra firme, com os carros ainda no seu interior.
"Trabalho sete dias por semana, sempre pela manhã, e decolo ao nascer do Sol, no máximo às 7h05. Quando não há corte do navio, os voos duram entre uma hora e meia e duas horas e meia. Nos dias de fatiamento, posso decolar a qualquer hora e já cheguei a voar três horas".
Filho de pai gaúcho e mãe carioca, João Guilherme Alves passou boa parte da vida em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e não dispensa um chimarrão logo após acordar, às 5h20. Em seguida, inicia a preparação para o próximo voo, certificando-se de que está tudo certo com a aeronave - ele, que reside pela terceira vez nos EUA, pilota em sistema de revezamento dois helicópteros do modelo Robinson R66.
Durante o trabalho de remoção, do qual começou a fazer parte há cerca de dois meses, o piloto já encarou mau tempo e tem de lidar com as baixas temperaturas, de aproximadamente 1º C ao raiar do dia.
"Já voei sob mau tempo, mas sempre dentro do regulamento e sob condições de visibilidade. Não foi nada demais, porém nunca é confortável lidar com turbulência. Já tive de antecipar ou adiar os sobrevoos devido a tempestades", destaca.
Além da pandemia do coronavírus, o time teve de lidar com a temporada "atípica" de furacões e tempestades, que chegaram a adiar o início dos esforços de fatiamento do MV Golden Ray.
Pai também era piloto e morreu em acidente
Além da rotina de estudar as condições meteorológicas e de checar cuidadosamente o helicóptero antes de decolar, Alves sempre leva consigo um amuleto: o crachá azul com a carteira da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) do seu pai, João Baptista Ferreira Alves.
Também piloto, o pai de João Guilherme morreu no dia 4 de março de 2018 aos 64 anos, na queda de um planador experimental de alta performance em Osório (RS). João Baptista estava testando a aeronave quando a tragédia aconteceu.
Emocionado ao falar do pai, João Guilherme faz questão de ressaltar a influência dele na sua vida e carreira.
"Estou aqui por causa dele, que sempre me incentivou. Tirei o brevê de piloto comercial nos Estados Unidos em 2013 com o apoio do meu pai, pois ele queria que eu tivesse o melhor treinamento. A intenção inicial era poder voar em plataformas de petróleo".
Alves relata que seu mentor perdeu a vida a 700 m de casa e agora pretende terminar o que ele começou.
"Outro protótipo deve estar pronto no fim do ano que vem e meus planos são de pilotá-lo e concluir o projeto. Quero honrar a memória dele, que já trabalhou na Azul e na Transbrasil e foi um dos desbravadores dos planadores no Brasil".
João Guilherme Alves relata que os demais integrantes da equipe estão hospedados em dois condomínios alugados especialmente para receber a operação e praticamente não há contato com gente de fora, por conta do risco de contágio.
Todos têm a temperatura corporal medida todos os dias e regularmente são submetidos a exame para verificar se estão contaminados pelo vírus causador da Covid-19.
Quando não está voando ou participando de reuniões, ele aproveita as horas vagas para ler e estudar no hotel. Também aproveita para observar as belezas naturais da ilha de Saint Simon, que se tornou sua casa provisória.
"Tenho um carro alugado à disposição e dou algumas voltas pela ilha para tirar fotos, pois também sou fotógrafo. No hotel só tem café da manhã, mas posso pedir comida por aplicativo e retirá-la no restaurante em sistema 'drive-thru'. Eles põem o alimento no porta-malas", explica.
Orgulho e choque cultural
Quanto à experiência de participar de um trabalho que virou notícia no mundo inteiro, ele se diz orgulhoso.
"Todos os dias a gente comenta que dificilmente viveremos algo parecido com o resgate de um navio com mais de 2.000 carros dentro. Tem sido encantador viver tudo isso, mas é uma pena que essa experiência esteja relacionada com um desastre. Queria que meu pai pudesse acompanhar tudo isso, tem sido muito bacana", diz.
Todos os tripulantes do cargueiro foram retirados com vida após o naufrágio.
Quanto ao convívio com o povo local, Alves salienta que teve de trabalhar duro para demonstrar sua capacidade e conquistar um posto-chave ante a concorrência de pilotos norte-americanos.
Ele destaca as diferenças culturais com as quais tem de lidar em um país estrangeiro.
"Ser brasileiro nos Estados Unidos tem uma dificuldade, volta e meia me deparo com questionamentos do porquê de eu estar aqui. Mas tem espaço para todo mundo, só estou fazendo o meu trabalho. A cultura daqui é muito diferente, os norte-americanos são muito discretos, organizados e disciplinados".
Apesar das dificuldades, João Guilherme Alves pretende ficar de vez nos EUA quando a operação terminar.
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