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Carros defeituosos: como montadoras usam brechas para escapar de um recall

Portaria de 2019 diz que recall é obrigatório em caso de risco à saúde ou segurança dos consumidores  - Foto: Shutterstock
Portaria de 2019 diz que recall é obrigatório em caso de risco à saúde ou segurança dos consumidores Imagem: Foto: Shutterstock

Paula Gama

Colaboração para o UOL Carros

18/07/2022 04h00

Imagine a cena: você compra um carro e algum tempo depois descobre que ele veio com uma defeito de fábrica que acomete diversos outros veículos fabricados no mesmo lote. O primeiro reflexo é ir atrás de um recall, principalmente quando o modelo já saiu da garantia. Mas a realidade é que nem sempre os produtos defeituosos são chamados abertamente para conserto, em alguns casos, o consumidor mais atento sai na frente na briga por reparo.

A frustração de ter um veículo com um problema de fábrica que não é reparado gratuitamente acontece porque, desde 2019, a portaria nº 618/2019, assinada pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, mudou um pouco as regras do jogo.

Para se ter uma ideia, em 2015, um boletim técnico de saúde e segurança do consumidor emitido pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), subordinada ao Ministério da Justiça, dizia que o recall tinha, como um de seus objetivos, "reparar ou substituir o produto ou serviço defeituoso, de modo que o consumidor não tenha seu patrimônio diminuído ou sua expectativa frustrada", dizia o documento.

No entanto, o Ministério da Justiça explica que, desde a publicação da portaria, o recall automotivo é obrigatório sempre quando evidenciado, seja por investigação interna realizada pela própria empresa ou manifestação técnica do órgão regulador, a existência de defeito que tenha o condão de gerar riscos à saúde e segurança dos consumidores. Isso significa que a desvalorização do veículo ou perda financeira não são mais suficientes para obrigar a montadora a fazer um recall.

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Casos recorrentes

Não é raro encontrar casos de defeitos de fábrica que não viraram propriamente um recall, ou seja, um chamamento oficial para que todos os carros produzidos em um determinado período sejam avaliados e corrigidos sem custos para o consumidor.

Um dos mais famosos é o caso PowerShift, que equipa modelos como EcoSport, Fiesta e Focus comercializados entre 2013 e 2017. Apesar de a Ford nunca ter feito um recall oficial, é expressivo o número de reclamações sobre perda de potência e travamento do câmbio em todo o país.

O fato fez com que a montadora ampliasse para 10 anos a garantia do Módulo Eletrônico de Controle de Transmissão (TCM) em acordo com o Procon-SP, mas os clientes reclamam que a atitude ainda não foi suficiente para resolver o problema.

Consumidores afirmam que o Powershift apresenta trepidações e perda de potência - foto: Shutterstock - foto: Shutterstock
Consumidores afirmam que o Powershift apresenta trepidações e perda de potência
Imagem: foto: Shutterstock

Outros carros da Ford também apresentaram defeito de fábrica: diversas unidades de Fusion e Edge produzidos entre 2015 e 2019 tiveram problema com o motor Ecoboost 2.0 do lote 910, que liberava uma fumaça branca antes de perder a potência. Apesar de não ter convocado um recall oficial, a Ford já reconheceu o problema por meio de um boletim técnico enviado às concessionárias americanas em 2019 e às brasileiras em 2020.

Procurada, a marca disse que "estes são itens que não oferecem risco à saúde ou segurança dos consumidores, e por essa razão não se faz necessário o lançamento de campanhas de recall. Contudo, a Ford reforça o seu compromisso, seriedade e preocupação em garantir a segurança de seus consumidores e atender às determinações legais que lhe são inerentes, uma vez que quando há, de fato, risco à segurança dos consumidores, a empresa identifica a questão e realiza de forma célere e preventiva campanhas de recall."

O caso mais recente de defeito de fábrica sem chamamento para recall é o dos modelos da Fiat e Jeep equipados com os motores turbo T200 e T270, como Pulse, Toro, Renegade, Compass e Commander. Trata-se de um problema na bomba de óleo dos carros, que faz o nível de fluido baixar de forma precoce. A Stellantis chegou a emitir um comunicado à sua rede autorizando a troca da bomba de óleo desses carros. Mas não fez chamamento para recall.

Algumas modelos turbo da Fiat e da Jeep estão passando por uma substituição na bomba de óleo - Divulgação - Divulgação
Algumas modelos turbo da Fiat e da Jeep estão passando por uma substituição na bomba de óleo
Imagem: Divulgação

Sobre o assunto, o grupo disse que "segundo a legislação, um recall deve ser feito pelo fornecedor quando há risco de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança do consumidor. No caso relacionado às bombas de óleo dos motores turbo da Stellantis, o inconveniente está relacionado exclusivamente à uma questão de qualidade e o eventual desgaste fora do padrão das peças em questão não gera diminuição da vida útil do motor, nem desligamento do veículo sem aviso e não envolve risco à saúde ou segurança dos proprietários dos veículos ou terceiros. A ação de análise e substituição quando necessária do item constitui o compromisso da Stellantis em assegurar a contínua melhoria da qualidade de seus produtos e a satisfação dos seus consumidores."

Os proprietários de Polo e Virtus, da Volkswagen, também reclamam de um problema frequente: trinca no eixo traseiro dos modelos, mas a marca também não fez a substituição oficial. Em fevereiro, questionamos a Volks por ter convocado, em 2019, proprietários de 7.471 unidades do T-Cross, ano/modelo 2020, para recall com o mesmo problema, mas não ter realizado o mesmo procedimento com os demais carros.

Donos de Polo e Virtus reclamam de trinca no eixo traseiro  - Divulgação - Divulgação
Donos de Polo e Virtus reclamam de trinca no eixo traseiro
Imagem: Divulgação

Na época, a marca disse que "o modelo T-Cross utilizava um eixo traseiro que, em um determinado período de produção, foi fabricado fora das especificações do produto. Em 15/10/2019, a empresa anunciou o recall de 7.471 unidades, com data de fabricação entre 03/05/2019 e 22/07/2019, para inspeção e, se necessário, substituição do eixo traseiro. Os modelos Polo e Virtus utilizam eixos traseiros diferentes dos utilizados pelo T-Cross".

Por que as montadoras não querem fazer recall?

Manoel Menezes, advogado especializado em veículos com defeitos de fábrica, explicou ao UOL Carros que, quando há um chamado para recall, a montadora é obrigada a reparar todos os modelos envolvidos, mesmo os que saíram da garantia. Além disso, as campanhas são amplamente divulgadas, o que exige um investimento grande na reparação, logística e comunicação.

"Muitas fábricas vão fazendo os consertos sem alarde para que os carros saiam da garantia e o consumidor perca o direito ao conserto. Mas é preciso lembrar que qualquer defeito que faça o carro parar, por exemplo, já põe em risco a vida dos usuários. A recomendação é guardar documentos de todos os serviços que foram feitos no veículo em relação ao defeito e acionar a Justiça", afirma.

O engenheiro mecânico André de Maria, membro de diversos grupos que estudam casos de recall e defeitos de fábrica no país, alerta que o posicionamento da Senacon não é adequado. "A portaria não tem força para alterar a Lei de 1997. Se o Brasil quer entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento), e um dos requisitos é a isonomia no tratamento de questões de respeito aos consumidores, o acidente de consumo [quando um defeito de fábrica desvaloriza o produto] tem que ter um tratamento diferenciado. É questão de respeito aos consumidores."

Procon-SP não quer consumidores desamparados

Perguntado sobre a obrigatoriedade do recall, o Procon de São Paulo disse que a realização está prevista no artigo 10 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078) e regulamentada pela Portaria 618/19 do Ministério da Justiça. "Ele deve ser realizado quando o defeito do produto ou serviço coloca em risco a saúde e a segurança do consumidor e de terceiros".

No entanto, o órgão afirma que quando o defeito é reconhecido e coloca em desvalorização o bem adquirido, mesmo que o recall não seja obrigatório, "o direito do consumidor em relação à desvalorização do produto é válido, e deve ser questionado no judiciário''.

No caso dos veículos com defeito no câmbio PowerShift, por exemplo, alguns consumidores relataram que conseguiram fechar acordos com a Ford na Justiça para a reparação dos danos materiais e morais.

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