Como caminhoneiros driblam a lei para continuar usando drogas na direção
No último ano, pelo menos quatro investigações policiais para apurar fraudes em exames toxicológicos foram deflagradas. Na maioria dos casos, criminosos vendem resultados negativos para a presença de drogas no organismo de motoristas profissionais, permitindo que eles renovem ou emitam a CNH. Ações desse tipo permitem que usuários de drogas continuem conduzindo veículos profissionalmente em todo o país.
A investigação mais recente, de julho deste ano, não trata da venda de resultados, mas apura erros no processamento de 249 mil exames toxicológicos de motoristas profissionais (Carteira Nacional de Habilitação nas categorias C, D e E) que atuam em todo o país.
O Ministério Público do Trabalho no Distrito Federal (MPT/DF) ajuizou Ação Civil Pública contra o Laboratório Sodré, sediado em Lins, interior de São Paulo, para que comprove a realização dos exames. Trata-se de uma denúncia feita pela Associação Brasileira de Toxicologia, de que o laboratório havia realizado apontamentos no Registro Nacional de Condutores Habilitados de 249 mil laudos de exames toxicológicos produzidos em 49 dias, algo muito superior à capacidade operacional no período, segundo o MPT/DF.
O Ministério Público do Trabalho pediu, também, condenação no pagamento de indenizações pelos danos materiais e morais coletivos de até R$ 69,2 milhões. UOL Carros entrou em contato com o Grupo Sodré, que afirmou que "tem capacidade para a realização de mais de 19 mil exames toxicológicos por dia, como demonstrará dentro do prazo dos autos da ação citada pela reportagem, em denúncia realizada por quatro laboratórios concorrentes (ABtox), que deu origem à ação do MPT de Brasília".
"Um dos primeiros no segmento toxicológico com atuação no Brasil, cumprindo as exigências do Senatran com escopo certificado pela ISO IEC 17025 Forense e pelo Colégio Americano de Patologia (CAP Accreditation), o Laboratório Sodré atua com a máxima seriedade no atendimento aos seus pacientes e parceiros credenciados, e tem a aprovação do Inmetro (órgão auditor) e demais órgãos competentes para atuar", defende-se.
Compra de resultados
A compra de resultados positivos também é um crime comum nesse meio. Há um ano, o Ministério Público Estadual (MPE-TO) e Polícia Civil de Tocantins apuraram um esquema de fraude em exames toxicológicos para obtenção da CNH, com 19 mandados de busca em Palmas e São Paulo. De acordo com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPE-TO, o grupo falsificava testes toxicológicos para encobrir o uso de drogas por motoristas.
As investigações apontaram que um laboratório de Palmas recebia as amostras falsas e atuava em acordo com donos de autoescolas. Para receber um resultado negativo para o uso de drogas, os motoristas desembolsam R$ 600, enquanto o valor normal do teste é de R$ 150.
Em janeiro, o Ministério Público do Espírito Santo desmontou um esquema semelhante. Donos e funcionários de clínicas, laboratórios e empresas de capacitação de condutores organizaram uma rede criminosa cujo carro-chefe era a fraude do exame toxicológico. Eram vendidos resultados negativos para o uso de drogas para motoristas profissionais. Em Minas Gerais, suspeitos de cobrarem R$ 2 mil pelo mesmo exame foram presos em Barão dos Cocais, em setembro de 2021.
67% dos caminhoneiros usuários testam positivo para cocaína
Um estudo realizado pelo SOS Estradas, com dados do Denatran, Renainf (Registro Nacional de Infrações de Trânsito) e da Associação Brasileira de Toxicologia, revela que os exames toxicológicos de mais de 700 mil motoristas profissionais de caminhão, vans e ônibus confirmam uso de drogas. Desses, 170,8 mil estavam com índices acima do limite permitido pela legislação.
A pesquisa, realizada entre março de 2016 e setembro de 2020, detectou que 67% dos testes positivos de portadores de carteiras do tipo C, D e E apontavam uso de cocaína.
Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, vê o uso de drogas por condutores profissionais um problema e um risco que precisam ser tratados. Para ele, a obrigatoriedade de realização dos exames ajudou a melhorar o quadro em relação aos dados de 2015, mas os números ainda são preocupantes. Ele explica que o exame não mostra um uso apenas eventual.
"Não é uma pessoa que cheirou cocaína hoje, faz o exame, daqui a um mês, vai dar positivo. É a pessoa que usa regularmente. Ela está acima de um determinado grau de contaminação para ser considerada positivo", pontua.
Outro detalhe chama atenção, após a lei que obriga apresentação de exame toxicológico negativo para emissão e renovação da CNH entrar em vigor, o número de profissionais habilitados caiu. Considerando os motoristas que não renovaram e os que deixaram de tirar a CNH, o SOS Estradas estima que existam, oficialmente, menos 3,6 milhões de motoristas profissionais habilitados no mercado hoje em dia.
Na contramão da redução de motoristas, o fluxo de veículos pesados vem crescendo nas estradas pedagiadas, com alta de 9,4% apenas no último ano, segundo dados da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias. O que sugere que há caminhoneiros trabalhando sem a habilitação.
Ossos do ofício?
O caminhoneiro veterano Almir Silva explica que o uso de drogas na profissão é algo corriqueiro, principalmente para profissionais que transportam cargas de horário, ou seja, alimentos perecíveis que precisam chegar ao destino com um prazo apertado, por isso escolheu trabalhar com o transporte de produtos.
"Quase todo caminheiro já usou rebite para entregar uma carga no prazo, mas agora as drogas são mais fortes. Quem leva cargas de horário, perecíveis, não aguenta a jornada sem o uso da droga. É uma realidade que todos conhecem, assim como pagar R$ 600 por um exame toxicológico negativo", conta o profissional.
O caminhoneiro Cajau Antonelli também escolheu trabalhar com insumos e cargas que não são perecíveis, por isso tem horários mais flexíveis. Ainda assim, ele mantém contato com colegas de todos os segmentos na estrada e constata: muitos trabalham durante todo o dia montando a carga e, durante a noite, precisam pegar a estrada.
"Fazendo uma análise a gente percebe que no Brasil o cara transporta alimentos perecíveis em um caminhão que não é frigorífico, é aberto. Se ele não acelerar a carga vai estragar. Se chegar atrasado, perde o frete ou paga uma multa de 50% do valor da carga. Conheço muito chefe de família que não queria usar drogas, mas, nesse contexto, o que fazer? As empresas sabem disso, mas a maioria das embarcadoras não fiscalizam as horas trabalhadas e a velocidade atingida", analisa o profissional.
Rodolfo Rizzotto também aponta a responsabilidade das empresas embarcadoras nesse problema. "Uma empresa que entrega uma carga sem verificar se o motorista sequer está com habilitação em dia precisa ser responsabilizada. A sociedade precisa entender a necessidade de um transporte socialmente responsável, não adianta seguir parâmetros de sustentabilidade e colocar a carga nas mãos de profissionais despreparados, com prazos impossíveis de serem cumpridos"
"O sistema te vicia, depois te descarta", diz procurador
O procurador do trabalho Paulo Douglas de Moraes, de Mato Grosso do Sul, acompanha a situação desde 2007. Durante a sua gestão, promoveu exames toxicológicos de urina em caminhoneiros algumas vezes. Na primeira, em 2007, concluiu-se que cerca de 20% dos profissionais checados usavam cocaína. O índice caiu para 12% em 2012, subiu para 34% em 2015 e caiu novamente para 19% em 2019, após a exigência do exame para manter a CNH. Mas também fica evidente que muitos ainda seguem utilizando entorpecentes.
"Os números são chocantes, mas percebemos que o caminhoneiro é duplamente injustiçado. Ao mesmo tempo em que tem que usar drogas para aguentar a jornada de trabalho, fica mal visto perante a sociedade. Com fama de viciado. Estamos falando de uma carga de trabalho desumana, com condições precárias para atender as imposições patronais de transportadoras e embarcadoras às custas do motorista", relata o procurador.
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