Democrata: carro nacional foi de sonho a fiasco e hoje tem só 2 exemplares
Alessandro Reis
Do UOL, em São Paulo (SP)
15/10/2023 04h00Atualizada em 30/10/2023 12h50
No início dos anos 60, a indústria automotiva brasileira ainda engatinhava e era dominada por marcas estrangeiras. Nessa época, um jovem empresário embarcou no sonho de lançar o Democrata, aquele que seria o primeiro carro totalmente projetado e construído em larga escala no País.
Contudo, o sonho durou apenas cinco anos e virou fracasso, sem que o veículo de fato chegasse ao mercado. Apenas cinco protótipos foram fabricados, além de pouco mais de duas dezenas de carrocerias de fibra de vidro. Atualmente, existem apenas dois exemplares montados, segundo relatos.
Falecido em janeiro de 2020 aos 88 anos, Nelson Fernandes era o pai do Democrata. Ele fundou em 1963 a Ibap (Indústria Brasileira de Automóveis Presidente) com grandes ambições: erguer uma fábrica capaz de produzir 350 carros por dia, volume semelhante ao da Volkswagen na época, e lançar três modelos diferentes, começando pelo Democrata, até 1968. Só que naquele ano a empresa melancolicamente fechou as portas, após uma sequência de problemas e polêmicas.
A estratégia de Fernandes era levantar o dinheiro necessário para viabilizar a Ibap por meio da venda de ações da empresa, que dariam aos compradores primazia para adquirir o Democrata por algo um pouco acima do preço de custo. A estratégia já tinha dado certo para a construção de um hospital, que existe até hoje, e de um clube campestre.
Muito antes da internet e das redes sociais, Fernandes buscou os sócios em uma peregrinação pelo Brasil a bordo de uma carreta, transportando um protótipo vermelho do carro. Conseguiu vender dezenas de milhares de cotas e seus compradores recebiam uma medalha com o símbolo da Ibap: a silhueta do Brasil dentro de uma engrenagem estilizada.
Na traseira da medalha, vinha o título "Sócio fundador", acompanhado de um texto carregado de patriotismo:
"Esta medalha perpetuará seu nome na história, ligando-o a um empreendimento que demonstrará ao mundo quanto pode fazer um povo consciente da sua própria capacidade de realização".
'O projeto era muito ruim'
Quem investiu na empresa acabou perdendo o dinheiro.
"Eu era adolescente em Londrina [PR] quando o Nelson apareceu na cidade com o Democrata em uma carreta. Meu pai, idealista, acreditou na história e comprou ações. Mal sabia ele que não havia a menor chance de produzirem o carro em série, o projeto era muito ruim", contou em 2021 o jornalista Josias Silveira, já falecido, ao UOL Carros
Na época, Silveira disse que já tinha dirigido dum dos dois carros remanescentes "em homenagem ao pai", mas não gostou.
"O motor esquentava demais e direção e suspensão decepcionaram, considerando a proposta esportiva".
Os primeiros protótipos traziam chassi e mecânica emprestados do Chevrolet Corvair, que também inspirou o visual da carroceria de fibra.
A versão final, porém, recebeu chassi exclusivo e outro motor, produzido sob encomenda na Itália e instalado na traseira: um 2.5 com bloco de alumínio e dois carburadores, capaz de render 120 cv e acoplado a uma transmissão manual de quatro velocidades.
A tração era traseira, a suspensão, independente das quatro rodas, e os freios traziam tambores.
Ceticismo e CPI antes do fim melancólico
Após a fabricação dos protótipos e com os recursos obtidos dos "sócios", Nelson Fernandes comprou um terreno em São Bernardo do Campo (SP) e iniciou a construção da fábrica, que chegou a ter 120 funcionários.
Contudo, naquela altura viabilidade da Ibap já era questionada, inclusive na imprensa - a revista "Quatro Rodas" fez uma série de reportagens negativas.
Já com a ditadura instalada, desde 31 de março de 1964, Fernandes e seu Democrata não pareciam ter a simpatia dos militares. A companhia foi alvo de uma CPI, por suspeita de golpe nos investidores, e um lote de 500 motores provenientes da Itália foi apreendido pela Receita Federal, sob alegação de contrabando.
A pá de cal foi dada pelo Banco Central, que vistoriou a fábrica e emitiu um parecer afirmando que a companhia não dispunha de funcionários qualificados para a produção de automóveis em larga escala nem tinha contratado os fornecedores necessários para viabilizar a manufatura.
A companhia fechou as portas e as carrocerias de fibra, bem como alguns chassis e outros componentes, ficaram trancados em um galpão da fábrica em São Bernardo durante cerca de 20 anos - até a Justiça liberar o acesso de Fernandes ao espólio da Ibap.
Irmãos salvam carros remanescentes
No fim da década de 1980, os irmãos José Carlos e José Luiz Finardi adquiriram as carrocerias e outros componentes do empresário e conseguiram montar as duas unidades funcionais que existem atualmente.
Uma delas, na cor verde, foi para o acervo do Museu do Automóvel em Brasília (DF), que tinha curadoria do jornalista Roberto Nasser - autor do livro "Democrata: o Carro Certo no Tempo Errado". O Democrata e outros veículos do museu foram adquiridos por um colecionador.
Democrata vira peça de museu
Vermelho, o outro exemplar ilustra esta reportagem e foi adquirido em meados dos anos 2000 pelos irmãos Róberson e Rogério Azambuja, do Rio Grande do Sul, também colecionadores.
Hoje, o carro faz parte do acervo do Museu do Automóvel de Canela (RS), fundado por eles.
De acordo com Róberson, o Democrata vermelho é o mesmo que rodou o Brasil na carreta e o único equipado com o motor italiano original.
"Democrata com motor original, acredito que só tem o nosso, que foi usado como 'laranja de amostra'. Quando compramos dos irmãos Finardi, em 2005, o carro ainda tinha algumas coisas para fazer e nós terminamos a reforma iniciada por eles. Eles demoraram uns quatro ou cinco anos para restaurá-lo", diz.
Ele destaca o valor histórico daquele que seria o primeiro carro genuinamente brasileiro, mas deixa claro que não é o modelo da época que mais gosta de dirigir.
"Na verdade, o Ford Galaxie é muito melhor".
Até hoje, as opiniões sobre Nelson Fernandes são divididas. Alguns o consideram um visionário injustiçado, vítima de suposta perseguição das montadoras tradicionais, com apoio do regime militar.
"Acho que ele errou a mão. Fabricar automóvel é muito mais complexo do que pode parecer. Portanto, não acredito que ele teve má-fé no negócio. Talvez tenha sido ingênuo", opina o colecionador de carros antigos Alexandre Badolato, que conheceu Fernandes pessoalmente há cerca de 18 anos e tem guardada uma das medalhas que o empresário dava aos investidores da Ibap, além do centro do volante do Democrata.
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