Ferrari de R$ 1.000 no ABC esconde história de separação entre pai e filho
A Ferrari Dino 208 GT4 1975 apreendida há 18 anos no ABC Paulista, disponibilizada para leilão com lance mínimo de R$ 1.092,50, tem um grande interessado em arrematar o veículo no pregão marcado para as 11h do dia 8 de julho.
O empresário Bruno Richter Lazar, de 38 anos, é filho de Ferry Lazar. o antigo proprietário do esportivo italiano apreendido em 2006 pela Polícia Civil por suspeita de adulteração do chassi e importação ilegal. Desde então, o carro ficou exposto aos efeitos do clima, na maior parte do tempo em um pátio da Prefeitura de Santo André (SP) - atualmente, é oferecido como sucata.
Ferry Lazar faleceu em 2014, aos 64 anos.
"Completamente deteriorada pela ferrugem", segundo laudo da Justiça Federal, a Ferrari, que só tem um exemplar do mesmo ano e modelo no Brasil, hoje está em um pátio da Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP).
"Com a ajuda de um advogado, estou tentando suspender esse leilão. Caso não seja possível, já consegui reunir uma quantia em dinheiro para tentar adquirir algo que acredito já ser meu", diz Bruno, que se diz surpreendido pela notícia do leilão - caso a Dino não seja arrematada no dia 8, um segundo leilão está marcado para as 11h do próximo dia 15, com lance mínimo de R$ 546,25 (metade do valor avaliado).
História de separação entre pai e filho
Bruno Lazar diz que a Ferrari enferrujada tem um enorme valor sentimental.
Para ele, o carro representa uma memória afetiva do pai, com o qual pouco conviveu. Também envolve uma disputa judicial com a família de Ferry Lazar para ser reconhecido como herdeiro legítimo dele - algo que Bruno diz ter acabado de conseguir.
O filho do antigo proprietário da Ferrari Dino diz ter sido pego de surpresa pela notícia do leilão, pois estaria prestes a inventariar a Ferrari para tentar resgatá-la do abandono - vale destacar que o veículo tem restrições administrativa a judicial.
"Meu sonho é reformar a Ferrari e deixá-la em um museu. Eu mesmo ou algum fã dessa saga vai acabar conseguindo dar um lance e resgatar ela de lá", torce.
Bruno relata que o convívio com o pai era esporádico e os dois se viam "no máximo" duas vezes por ano. Seus pais nunca foram casados e ele acredita ser o único filho de Lazar.
"Nunca vivemos juntos, isso era um sonho na época para mim. Isso fez com que me afastasse porque não conseguia conviver em família com ele, não conseguia ter esses momentos" diz o empresário.
Por causa de Ferrari, filho descobriu morte do pai
Foi inclusive por causa da Ferrari que ele soube da morte do pai, em 2018, quase cinco anos após seu falecimento.
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Quero receber"Foi um choque para mim. Soube da morte dele através do carro. Uma pessoa veio querendo comprá-lo, mandou mensagem no Facebook e disse que meu pai já tinha falecido. Nesse mesmo dia, consegui confirmar por conta própria ao descobrir a certidão de óbito em um cartório perto de onde ele morava, em Santana [bairro da Zona norte da capital paulista]", relata, com a voz embargada.
Bruno conversou pela última vez com Ferry cerca de quatro meses antes da sua morte pelo WhatsApp. Depois disso, suas mensagens não tiveram mais resposta, até que a foto vinculada ao número de telefone foi trocada pela imagem de um desconhecido.
"Nunca me despedi dele. Fica esse sentimento bem nítido, bem ruim [choro]".
Agora, ele sente que finalmente deixou a mágoa para trás.
"Eu tinha uma percepção de que ele era um exemplo ruim de pai porque não ligava no aniversário, não ia visitar, não me pegava na escola. Porém, agora, dentro de mim, eu não falo mais que não tinha pai".
'Gênio incompreendido'
Ele considera Ferry, engenheiro de formação, um gênio incompreendido.
Bruno relembra a participação do pai no programa "Ídolos" (SBT), quando ele foi reprovado pelos jurados ao cantar uma versão da música "Surfin' Bird", há quase 15 anos.
"Ali a gente vê as sequelas que uma série de internações em manicômios públicos por opção da família dele. A gente não concordava com isso. Eles tratavam o Ferry como um louco, mas na verdade ele era uma pessoa acima da média. O QI dele era absurdamente alto", opina.
Ele conta que o pai "mandava teorias para a Nasa", fazia projetos de aeromodelismo e chegou a ser condecorado por projetar um aeromodelo "que atravessou Israel de ponta a ponta".
Passeio de Ferrari na Paulista
Dentre as lembranças que Bruno guarda está o passeio que fez com o pai a bordo da Ferrari na Avenida Paulista há mais de 20 anos, quando era adolescente.
Ele relata não ter fotos do veículo.
"Foi a última vez em que vi o carro andando, praticamente novo, com tudo funcionando. Ele ficou com a Ferrari parada durante anos atrás de peças. Tinha uma que quebrou e demorou muito tempo para chegar. O carro era azul, um azul bem escuro, forte", recorda.
Como Ferrari Dino GT4 foi apreendida
De acordo com o boletim de ocorrência da apreensão da Ferrari em 2006 pela Polícia Civil de São Paulo, na época o veículo estava registrado no nome do romeno Ferry Lazar.
Segundo o boletim, a Ferrari foi apreendida em Santo André por suspeita de adulteração de chassi, após denúncia feita pelo próprio Ferry em 2006.
O boletim diz, com base em relato do antigo dono, que a Dino desapareceu em 2002, após ele deixar o veículo em uma oficina mecânica para reparos em fevereiro daquele ano. Algum tempo depois, ele retornou ao estabelecimento, que havia fechado, e não conseguiu mais contato com o dono do comércio.
Quanto custaria reformar a Ferrari Dino
Caso a Ferrari Dino 208 GT4 seja vendida no leilão, quanto custaria restaurar essa Ferrari e deixá-la em perfeitas condições?
Há quatro anos, nossa reportagem consultou especialistas e exibiu para eles as fotos do veículo para ter uma noção do trabalho e do dinheiro necessários para devolver a Dino à vida.
Para se ter uma ideia, um exemplar 1975 da Dino 208 GT4 em bom estado foi leiloado em 2022 em Paris, França, pela RM Sotheby's por 37.950 euros (cerca de R$ 230,4 mil na conversão direta e na cotação atual, sem incluir os custos de uma eventual importação para o Brasil)
R$ 1 milhão?
Na hipótese dessa Dino leiloada em 2022, caso fosse legalmente trazida ao Brasil. custaria mais do que o dobro do valor informado acima.
No caso específico da Ferrari de Santo André, sua restauração completa pode superar esses valores e facilmente passar de R$ 1 milhão. A estimativa é de Kauê Barbosa, da Via Italia, representante oficial da marca italiana no Brasil.
"É uma pena um carro como esse, único exemplar no Brasil, estar abandonado. Por ser um veículo antigo, um carro com quase 50 anos de idade, encontrar as peças é mais difícil. Se a restauração fosse realizada em nossa oficina, única e exclusiva da Ferrari no País, eu usaria apenas peças originais", diz Barbosa, em entrevista concedida em 2020.
Se o proprietário solicitar o certificado Classic da Ferrari após a restauração, a conta fica ainda mais alta.
"Nós estamos aptos a emitir esse certificado, que atesta perante a fábrica em Maranello que o veículo está em suas condições originais, apesar de ter sofrido uma restauração. Quanto mais antigo o carro, mais caro é esse certificado".
Faça você mesmo
Há quem diga ser possível "reconstruir" a Dino enferrujada por menos dinheiro - isso se o veículo estivesse na Inglaterra e o próprio dono se encarregasse do serviço, usando peças paralelas.
"O único modo de restaurá-la sem gastar uma fortuna seria comprar e fazer o serviço por conta própria. Precisa ter muito conhecimento de funilaria e mecânica. Isso reduziria muito o custo da mão de obra, que é extremamente elevado", opina o youtuber britânico Scott Chivers, do canal 'Ratarossa'.
Chivers tem hoje seis Ferraris na garagem e é especializado em encontrar modelos da marca por pechinchas, que ele reforma na garagem de casa.
"Considerando que essa Ferrari enferrujada ainda tenha motor e transmissão, consertar esses componentes e a carroceria custaria cerca de 20 mil libras [R$ 143 mil]. Se for possível manter alguns dos painéis e substituir as partes oxidadas por meio de solda, isso pouparia muito dinheiro. Assim, o projeto valeria a pena".
O youtuber conta que a primeira Ferrari que comprou, há 25 anos, foi justamente uma Dino GT4, pela qual pagou 2.000 libras (R$ 14,3 mil). Porém, depois ele teve de desfazer o negócio por conta de problemas com documentação. A ideia era restaurá-la.
"Na época, era difícil encontrar peças para esse modelo e você só conseguia da própria Ferrari. Hoje você encontra os componentes na internet com maior facilidade e por preços muito mais baixos".
Ferrari com motor da Fiat
Quando a Dino nasceu, no fim dos anos 1960, tratava-se de uma Ferrari desprezada pelos clientes mais puristas. A pioneira 206 GT, lançada em 1968, nem trazia o emblema do cavalo empinado da marca italiana.
Era um modelo mais compacto e acessível, equipado com motor 2.0 V6, instalado entre os eixos na traseira - pequeno para os padrões da marca.
O propulsor dessa primeira Dino, inclusive, era fabricado pela Fiat - outro motivo para o preconceito. O panfleto publicitário da 206 GT reforçava essa imagem: "Compacta, brilhante, segura... Quase uma Ferrari".
A 208 GT4, que estreou em 1975, já trazia logotipos da Ferrari e trocou as linhas sinuosas desenhadas pela Pininfarina por um desenho mais reto, assinado pelo estúdio Bertone.
Foi concebida para o mercado italiano, portanto, é raro se se ver uma em outros países.
Ferraris como a que está sendo leiloada eram equipadas com uma versão compacta do motor V8 utilizado na Dino 308 GT4, com cilindrada reduzida de três para dois litros. Ambas foram as primeiras Ferraris com um V8 central - configuração utilizada até hoje.
A baixa cilindrada na época era uma forma de a fabricante de Maranello evitar os elevados impostos cobrados na Itália sobre veículos com motor acima de 2.0.
Quando nova, a Ferrari Dino GT4 rendia 172 cv de potência e a velocidade máxima era de 220 km/h. Sua cabine tinha quatro assentos.
Uma curiosidade: o nome Dino foi usado pela primeira vez em Ferraris de competição no fim da década de 1950 e é uma homenagem a Alfredo, filho do fundador Enzo Ferrari que morreu em 1956.
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