Apaixonadas por duas rodas

Impulsionados por mais mulheres pilotando motos em SP, motoclubes femininos tomam ruas e viram rede de apoio

Patrícia Santos, do Desenrola e Não me Enrola Colaboração para o UOL, de São Paulo (SP) Patrícia Santos/UOL

Com camisetas estilizadas e capacetes personalizados, um grupo de cerca de 100 mulheres pilota motos e chama a atenção nas ruas da cidade de Guarulhos, na Grande São Paulo. Fazendo barulho com escapamentos e um coral de buzinas, elas distribuem sorrisos e acenos por onde passam.

Juntas, elas integram cinco motoclubes femininos paulistas: Equipe Iluminadas do Asfalto, Apaixonadas por Duas Rodas, Comboio das Gatas, Rainhas do Toque e Equipe Motogirls 013. Durante uma motociata realizada em março, elas desfilaram pelos bairros de Pimentas, Cumbica, Nova Cumbica, Parque Jurema e Centenário com uma organização de segurança reforçada para evitar acidentes.

O perfil das participantes é diverso: mães, estudantes, trabalhadoras, entre 18 e 45 anos, e que moram em diferentes lugares da área metropolitana do estado, principalmente nas periferias. O evento foi mais um dos encontros promovidos por elas para se conhecerem, organizarem ações sociais e trocar experiências sobre como tem sido transitar nas cidades sob duas rodas.

Patrícia Santos/UOL

Há 14 anos pilotando, Jéssica Pereira Lima, 29, criadora da Equipe Iluminadas do Asfalto, e responsável por organizar o encontro em Guarulhos em celebração ao Dia da Mulher, diz que ainda se espanta com a quantidade de mulheres que ocupam as ruas e avenidas com suas motos.

Uma das participantes e organizadoras do encontro de março, Jéssica conta que a cidade de Guarulhos foi escolhida para receber a atividade dos motoclubes femininos porque as mulheres que pilotam na cidade ainda se sentem inseguras para andar de moto em outros municípios. O cuidado com as parceiras diz muito sobre a sua própria relação com a atividade de pilotar. "Quando eu tô com problemas, eu subo na moto e esqueço de tudo. Essa liberdade faz eu não querer parar com essa vida", conta.

Quando comecei a andar, eu trabalhava com entregas, e, na época, nem tinham esses aplicativos, e o GPS quase ninguém usava. Dá até saudade disso. E, hoje em dia, olho grupo, e são muitas meninas pilotando. Comparando com antigamente, não dá nem para acreditar.

Jéssica Pereira Lima, 29, criadora da Equipe Iluminadas do Asfalto

Pandemia em duas rodas

Segundo o Detran de São Paulo, houve um crescimento de 8% no número de mulheres habilitadas para condução de motocicletas entre 2019 e 2021. O número saltou de 2,2 milhões para quase 2,5 milhões e, com isso, elas passaram a representar 25% do número total de motociclistas no estado.

Na análise do Detran-SP, o aumento de mulheres habilitadas para motocicletas foi provocado pela pandemia, uma vez que muitas mulheres estavam fora do mercado de trabalho e passaram a atuar em aplicativos de delivery para gerar renda.

A agente comunitária de saúde Talita Lessa, 32, moradora do Jardim Dionísio, zona sul de São Paulo, é uma dessas mulheres. Ela trabalha em um equipamento público de saúde durante o dia e, à noite, utiliza sua moto para fazer entregas. A jornada de trabalho também continua nos finais de semana, quando ela ministra aulas para mulheres que querem tirar a habilitação, tanto de moto quanto de carro.

Para Talita, pilotar é uma espécie de terapia. "Às vezes, a gente só precisa pilotar para relaxar. Às vezes, acontece uma coisa difícil no trabalho, alguém me maltratou naquele dia. Então tudo que a gente quer é espairecer, tomar aquele ventinho no rosto, sentindo a sensação gostosa de liberdade. É uma terapia para gente", diz.

Ela é uma das organizadoras do Comboio das Gatas, grupo que reúne cerca de 190 mulheres e tem sede no Jardim Ângela, zona sul da capital. Ele foi criado no ano passado em meio à pandemia da covid-19 e realiza encontros periódicos que são marcados e organizados por meio de um grupo no WhatsApp, além de interações no perfil da iniciativa no Instagram.

Foi nesse grupo que me encontrei. Aqui encontrei amizades verdadeiras, são pessoas que, se precisar, estarão lá para ajudar, ouvir ou só espairecer, tirar um lazer.

Talita Lessa, 32, agente comunitária de saúde

Enfrentando o mecânico

O uso intensivo da moto durante o trabalho de entregas com os aplicativos de delivery fez com que Talita demandasse mais de serviços de mecânica. Como nem sempre é possível pagar pelos consertos ou achar um mecânico ou achar alguém confiável, ela passou a fazer os reparos por conta própria para os problemas que apareciam repentinamente na Ventania, nome com o qual batizou sua moto.

"Em termos de oficina, tem muitas pessoas que querem cobrar por um serviço que não é justo, querem cobrar mais pelo fato de nós sermos mulheres e não entender muito", diz.

Um desses mecânicos é Jander Sousa, 29, morador do Jardim Lídia, que tem uma oficina no Jardim Mazza, nas proximidades da Estrada do M´Boi Mirim, na região sul da capital.

"Toda vez que a gente vai no Jander, ele sempre explica: 'essa peça aqui faz isso, essa faz aquilo' e 'se eu fizer esse tipo de conserto, pode ser que leve um tempo para danificar de novo' ou 'se a gente trocar essa peça por uma nova, mesmo que seja paralela, vai dar bom'. O ponto é que o Jander não enxerga a gente como sexo frágil", argumenta.

Segundo o mecânico, cerca de 20% de sua clientela é formada por mulheres, muitas delas, integrantes do Comboio das Gatas. "É inusitado ver mulheres pilotando", afirma. "Muda bastante a forma de explicar qual é a peça danificada e o que aquela peça vai fazer na moto dela", diz.

Tem muitas pessoas que tratam as mulheres de uma maneira que não é legal. Só porque elas estão andando de moto, acham que elas estão tomando o lugar de certos homens. Tem muitos mecânicos que são assim

Jander Sousa, 29, mecânico

Trabalho, afeto e segurança

Outra das criadoras do Comboio das Gatas é Tayná Venturino, 24, moradora do Morro do Índio, bairro da zona sul de São Paulo. A motivação, explica ela, se deu porque não queria mais se sentir sozinha. Retornando de um longo período morando no interior do estado, ela queria conhecer mais pessoas que também eram apaixonadas por motos, assim como ela.

Com um grupo de WhatsApp e mensagens no Instagram disparadas para pessoas que ela identificou que eram motociclistas, o Comboio das Gatas foi criado. "No mesmo dia que eu criei o grupo deu a maior repercussão. Nunca imaginei que seria assim", relembra.

Um dos propósitos da iniciativa é ser uma rede de apoio pessoa a profissional para suas integrantes. Em março, por exemplo, quando uma das colegas do motoclube teve a casa alagada durante as fortes chuvas em São Paulo, Talita e outras integrantes se mobilizaram para arrecadar dinheiro. Recolheram R$ 350, com os quais a conhecida comprou alimentos e conseguiu pagar pagar o aluguel. "Isso foi para dar força e para ela entender que não tá sozinha. E sempre foi assim. Quando alguém do grupo precisou de apoio, ela também já ajudou", conta Talita.

Após um ano de criação do motoclube Comboio das Gatas, Talita afirma que experiências de apoio mútuo transformaram positivamente o estado da sua saúde mental.

Depois do Comboio das Gatas, eu até parei de tomar remédios para depressão. Foi uma fase muito difícil. Chegou uma época em que eu só queria chegar em casa e me isolar literalmente. Não queria fazer mais nada, e foi muito ruim. Ninguém merece viver assim, todo mundo tem que saber o seu lugar, e eu encontrei o meu aqui.

Talita Lessa, 32, agente comunitária de saúde

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