Carros aos pedaços

Bairro na Zona Leste de São Paulo tem megadesmanche a céu aberto com veículos desovados no Tietê

Alessandro Reis Do UOL, em São Paulo Reprodução

Localizado na Zona Leste da capital paulista, às margens do Rio Tietê, o bairro Jardim Pantanal e suas adjacências não sofrem apenas com os constantes alagamentos em dias mais chuvosos. Dentre as muitas mazelas enfrentadas por seus moradores está a ação de desmanches ilegais de veículos a céu aberto, que se intensificou na pandemia e hoje atingiu escala industrial.

A quantidade de carcaças de carros deixadas na região é tão grande que elas, literalmente, podem ser vistas do espaço - por meio de imagens de satélite produzidas neste ano e disponibilizadas pelo Google Maps.

Algumas dessas fotos exibem, inclusive, fileiras de carros parados em vielas, que estariam à espera do respectivo desmantelamento segundo empresas de rastreamento veicular ouvidas por UOL Carros.

Além disso, dezenas de despojos automotivos permanecem dentro do rio, lá jogados por criminosos ou carregados pela própria chuva - representando um evidente risco ambiental e com o conhecimento da polícia, segundo comprovam imagens recentes cedidas à nossa reportagem por companhias especializadas na recuperação de automóveis roubados ou furtados.

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Localização estratégica

O Jardim Pantanal e seus arredores estão em uma região estratégica, beneficiando a ação dos bandidos: fica próximo da Avenida Ayrton Senna, que dá acesso a Guarulhos, na Região Metropolitana, onde o índice de roubos e furtos de veículos é tradicionalmente elevado.

O bairro também está na Zona Leste, a mais populosa da capital e que reúne os bairros líderes na ocorrência desses crimes na cidade de São Paulo.

Levantamento da Ituran feito com base em dados públicos da SSP-SP, inclusive, apontam que nove dos dez bairros campeões em roubos e furtos de carros, utilitários e motos ficam no Leste da capital.

A lista é liderada por São Mateus, seguido por São Lucas, Itaquera, Água Rasa e Vila Prudente, considerando os cinco primeiros colocados. Todos são bairros relativamente próximos do Jardim Pantanal e o abastecem com veículos para desmanche.

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Linha de montagem do crime

Segundo Rodrigo Boutti, gerente de operações da Ituran, algo entre 25 e 30 veículos são desmontados diariamente no entorno do Jardim Pantanal.

Ele diz isso baseado no testemunho de funcionários enviados à região para tentar recuperar veículos de clientes cujo rastreador deixou de funcionar justamente lá, após serem subtraídos por bandidos.

Boutti diz que há dias nos quais três carros rastreados por sua empresa são levados para o bairro para abastecer o mercado ilegal de peças veiculares.

"Neste início de ano, com o relaxamento das restrições à circulação antes vigentes em decorrência da pandemia, aumentaram os roubos e furtos de automóveis e os desmanches no Jardim Pantanal subiram com toda força", diz o executivo.

De acordo com ele, seus agentes identificaram a existência de pelo menos quatro desmanches diferentes na área, concentrados nas proximidades das ruas das Crianças e Lírio Branco. Uma das "linhas de desmontagem", relata, está perto de um campo de futebol.

"Os veículos são enfileirados e cada carro é desmanchado em cerca 25 minutos por diferentes equipes. Uma cuida apenas da parte elétrica, enquanto outra fica encarregada de remover motor, câmbio e outros itens mecânicos", diz Boutti.

O especialista afirma que os bandidos atuam diuturnamente em paralelo a outras atividades criminosas empreendidas nas cercanias, como tráfico de drogas.

Após a desmontagem, a numeração do chassi é cortada, as placas são removidas e muitas carcaças acabam destruídas pelo fogo, para dificultar a posterior identificação do veículo e acabar com evidências do crime, como impressões digitais.

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Bairro fica a 600 m de delegacia

Boutti e outras fontes consultadas explicam que a tentativa de resgate de um carro roubado ou furtado por suas respectivas empresas depende de apoio da polícia - acionada quando a empresa de rastreamento detecta que o veículo de cliente foi parar em um desmanche criminoso, incluindo os instalados no Jardim Pantanal e arredores. Contudo, muitas vezes não há respaldo policial.

"É um local de difícil acesso, monitorado 24 horas por dia por olheiros que relatam imediatamente a presença de policiais ou de pessoas que não moram ali. A Polícia Militar informa que sua prioridade são ocorrências que envolvem ameaça à vida, enquanto casos de recuperação de veículos são tratados como secundários", pontua Wagner Manoel, diretor de operações da Segtrack, que também fornece serviço de rastreamento veicular.

Manoel acrescenta que, sem escolta policial, suas equipes só ingressam na região mediante autorização dos chefes do crime, enquanto os desmanches acontecem tranquilamente em plena luz do dia, a menos de 1 km do 59º Distrito Policial (Jardim Noêmia).

"Os criminosos já perceberam que a polícia vai pouco lá. Ao mesmo tempo, eles atingiram um nível de organização e logística tão grande que, daqui a pouco, será impossível entrar no Jardim Pantanal", alerta Manoel, que defende a realização de bloqueios policiais nas entradas do bairro para coibir o ingresso de automóveis que abastecem os desmanches.

Superintentente de operações da Sat Company, outra empresa do ramo, Carlos Alberto Betancur classifica a região do Jardim Pantanal como "o maior desmanche ilegal de carros da América Latina nos últimos dez anos" e ratifica o depoimento do colega quanto ao poder da criminalidade naquela área.

"Ninguém entra lá à noite, inclusive a polícia, que não fornece apoio nesse horário. Só conseguimos atuar durante o dia", destaca Betancur, que também é diretor para o Brasil da IATTI (Associação Internacional de Investigadores de Roubos de Automóveis).

Vídeo captado por meio de drone no dia 25 de fevereiro deste ano por empresa de rastreamento mostra um amontoado de carcaças na beira do Tietê no bairro Jardim São Martinho, vizinho ao Jardim Pantanal, ao lado de viaturas da PM.

Governo de SP diz que recuperou 29 veículos na região

Questionada, a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública) afirma que "equipes do 59º DP realizam incursões para coibir esses delitos" na região.

"Somente no primeiro trimestre de 2022, o trabalho conjunto das polícias, na região, resultou na prisão em flagrante de 17 criminosos, na instauração de 71 inquéritos, na apreensão de uma arma de fogo e na recuperação de 29 veículos".

O órgão acrescenta que "para desarticular e prender quadrilhas de roubo e furtos de veículos, as polícias realizam ações como a Desmanche, que já vistoriou mais de 130 estabelecimentos visando o combate da receptação de veículos e peças roubadas, a Saturni e a Fur Partes, realizadas na região central da capital para coibir as ações delituosas relacionadas às motos".

Segundo a secretaria, neste ano essas operações, realizadas em conjunto com o Detran-SP (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo) e a Prefeitura, resultaram na interdição de 47 lojas e na apreensão de 200 toneladas de motopeças.

A SSP-SP também menciona a recuperação de 3.469 veículos durante o primeiro trimestre deste ano.

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Alvos incluem caminhões pequenos e modelos de luxo

As três empresas de rastreamento veicular consultadas por UOL Carros apontam que os modelos preferidos pelos desmanches do Jardim Pantanal são carros de passeio compactos e também vans e pequenos caminhões, os VUCs (veículos urbanos de carga).

Essa preferência, pontuam, é explicada pela maior demanda por peças ilegais desses tipos de veículos, cujas carcaças se vê em profusão nas margens do Rio Tietê.

"Fatores como a crise econômica, a falta de peças de reposição e a escassez e o preço elevado de veículos e componentes novos tem aumentado a base de clientes dos desmanches", diz Carlos Alberto Betancur.

O executivo aponta também que vê indícios de que veículos têm parado nos desmanches do bairro da Zona Leste por iniciativa dos próprios donos.

"Já vimos recentemente veículos deixados praticamente inteiros na região, supostamente abandonados por proprietários que forjaram o furto para receber a indenização da seguradora", avalia.

Betancur acredita que este seja o caso de alguns automóveis de luxo que lá têm aparecido, como Toyota Hilux e carros de marcas premium como Mercedes-Benz e BMW.

"Nesta semana, flagramos um Jeep Compass 2022 em desmanche no bairro, complementa Rodrigo Boutti.

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Carcaças no Tietê causam dano ambiental

Boutti informa que atualmente existem cerca de 50 carcaças de automóveis dentro e nas margens do Rio Tietê, trazendo elevado risco de contaminação das respectivas águas por fluidos eventualmente contidos nos veículos, bem como outros materiais nocivos.

Como dá para constatar nas fotos que ilustram esta reportagem, o Tietê se tornou um verdadeiro ferro-velho irregular.

Por se tratar de uma região de várzea, sujeita a enchentes, a situação é agravada: na época de chuvas, é normal o nível do rio subir e transbordar, arrastando para dentro de si os despojos veiculares - que eventualmente são cobertos pelas águas ou levados para outras áreas.

Dois vídeos obtidos por UOL Carros demonstram bem essa realidade: o primeiro exibe partes de veículos ainda em terra firme no mês de janeiro. O segundo, captado no mês seguinte no mesmo local, mostra as carcaças já dentro do Tietê.

O governo paulista também não se manifestou sobre a questão ambiental até o momento.

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