Empinada

Chamada de "grau", manobra com motos vira moda na periferia, enfurece moradores e ganha defensora no Congresso

Giacomo Vicenzo Colaboração para UOL Carros, de São Paulo Larissa Zaidan/UOL

Em São Paulo, uma moto sobe a rua em velocidade. O jovem que a conduz diminui a marcha e joga o corpo para trás. Após acelerar, empina o quadro e se equilibra só na roda traseira. Ao chegar a 90 graus de inclinação, raspa a placa no chão. Enquanto pousa a roda dianteira no asfalto, ele acelera até o motor atingir sua capacidade máxima de giro. Esse corte do giro é o que provoca um estrondoso "ran-dan-dan-dan" ou "bololô" - a depender de quem escuta.

Descrita acima, a manobra conhecida como grau é moda entre jovens motociclistas da periferia, que driblam a polícia e enfurecem moradores. Além disso, cometem uma infração gravíssima de trânsito e arriscam a vida. Empinar motos só perde para a ausência de capacete entre a imprudência, segunda maior causa de acidentes sobre duas rodas, mostra uma pesquisa.

Nada disso, porém, afasta do asfalto os grauzeiros. Nem poderia. Alguns deles contaram ao UOL Carros que a moto é lazer só aos domingos. Nos outros dias, é objeto de trabalho, pois trabalham como entregadores. De tão entranhado à rotina de comunidades, o grau ganhou status de cultura e já molda a linguagem desses jovens e permeia a música que faz a cabeça deles, o funk.

Ainda vistas com maus olhos na periferia, as manobras ganham ares de esporte em outros ambientes. E, no Congresso Nacional, já contam com uma defensora, a deputada federal Alessandra Silva (PSL-MG), apelidada de "madrinha do grau".

Larissa Zaidan/UOL

O toque na moto

O sonho de quem chama no grau é ser o toque na moto, gíria que se refere à habilidade invejável dos que conduzem com destreza. Esse é o desejo de Phelipe Pinas, 24, e Ronan Leite, 25, que receberam o UOL Carros em um domingo ensolarado de setembro, em Cidade Tiradentes, extremo leste da capital paulista. Ambos são entregadores — para um app de delivery de segunda a sexta e para uma pizzaria do bairro no período da noite de quinta-feira a domingo. É só nas tardes de domingo que pilotam as motos sem as caixas de entrega nas costas. Amigos de infância, os dois viram a paixão pelo grau nascer quando ainda andavam de bicicleta.

Quando eu estou em cima da moto e dou um grau o estresse vai para fora. A adrenalina toma conta e é uma sensação inexplicável"

Com eles, a reportagem viu outra dezena de motociclistas acelerar, cortar giro e fazer manobras em uma rua extensa, sem curvas e pouco movimentada do bairro. "O pessoal vem dar grau aqui porque tem uma feira de domingo no começo da rua e fica mais difícil de ter patrulhamento da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas, da Polícia Militar de SP) nesse horário", explica Pinas montado em sua Honda CG 160.

Ronan ostenta uma Honda CB Twister 250 modelo 2021, mas cita outras aquisições que já teve, como uma "meiota", gíria para o modelo de moto da Yamaha [XT 660R] e uma Titan.

'Sujeito a cacete'

Se, para esses jovens, acelerar e empinar um "robozão", gíria para motos de alta cilindrada geralmente importadas, é símbolo de status e euforia, a atividade está longe de ser aceita pela comunidade. Por isso, Ronan procura espaços mais reservados para as manobras. "Não acho certo ficar dando grau em rua normal. A gente se reúne nesta mais deserta para não atrapalhar ninguém. Mas, dentro da minha família, escuto muita coisa negativa por dar grau", diz.

Enquanto conversam com a reportagem e são fotografados, alguém grita: "Rocam!". Antes mesmo de qualquer patrulhamento surgir, as motos se dispersam. O clima de tensão permanece até Pinas voltar sorrindo: "Alarme falso".

A ideia de estar em constante estado de alerta e de que não são bem-vindos é comum entre os grauzeiros. Quando não são coibidos pela fiscalização, enfrentam a hostilidade em muitos bairros. Em algumas ruas de Cidade Tiradentes, alguns moradores estendem faixas que não deixam em dúvida sua opinião sobre o grau: "é proibido empinar a moto e tirar de giro - sendo sujeito a cobrança e cacete".

O bololô do robozão

O funk e o rap não só embalam as manobras como também absorvem muito dos símbolos que orbitam a cultura do grau, do som do motor acelerando às gírias. Rincon Sapiência, por exemplo, canta em "Cotidiano":

E sem efeito especial, eu vejo os robozão
Pode avisar que é real e não é Hollywood
Que o número da sorte seja 660....
Acelerou é bololô e tchau! Passando marcha, acelera e vrau
O equilíbrio pra chamar no grau
Lá na quebrada é fundamental"

Doutorando em Música pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do funk enquanto fenômeno cultural, Thiago Alves explica que a geografia e outros fatores sociais são essenciais para compreender esse fenômeno.

A música é uma atividade social inseparável das condições de vida material, e tanto o funk quanto a cultura das motos acontecem nas quebradas. A moto é um veículo automotivo mais barato que o carro e que facilita a mobilidade urbana, algo muito importante na vida periférica"

Com a pandemia, diz ele, as motos viraram ainda símbolo de trabalho para entregadores. Isso explica sucessos como "Eu achei" do Paulin da Capital", com versos como "Minha nave jogada na mata / Sem a frente, toda depenada / Ela tava nesse cemitério / Onde o GPS não ligava / No lugar que não entra polícia".

O fenômeno não ocorre apenas na periferia de São Paulo. O meme "Leia livros e empine motos" viralizou após um post do perfil no Instagram Funkeiros Cults, criado por Dayrel Azevedo, 21 anos, de Manaus. Na capital amazonense, os jovens sonham em ter uma moto para entrar na onda do grau.

Vejo o grau como um esporte da periferia. É comum encontrar homens e mulheres empinando a moto por aqui. Isso está crescendo e muitas pessoas sonham em ter uma moto."

Dayrel Azevedo, influenciador e criador da página Funkeiros Cults

Glossário da cultura do grau

  • Cortar o giro/ tirar de giro/enrolar o cabo:

    Acelerar o motor até a rotação máxima, geralmente pressionando a embreagem. Isso provoca o chamado "corte de giro do motor", mecanismo que preserva o conjunto mecânico quando ele atinge o giro máximo. A ação provoca sons altos.

  • Surfe ou suicida:

    Manobra em que o piloto se equilibra em cima da moto e a faz de prancha de surfe. Cair nessas ocasiões pode ser bem perigoso, o que faz a manobra ser também chamada de suicida.

  • Robozão:

    São motos de alta cilindrada e geralmente importadas. Marcas geralmente chamadas desse modo são Tiger Triumph e BMW.

  • Borrachão:

    Manobra em que o piloto destraciona a roda traseira, acelera a moto em alta rotação, mas não sai do lugar. A ação faz fumaça subir.

  • Raspão ou raspada:

    Tipo de grau em que o piloto empina a moto e raspa o escapamento e/ou placa no chão, gerando faíscas pelo atrito.

  • Dar um quebra:

    Desviar de um obstáculo bruscamente ou fazer uma curva com a moto inclinada usando apenas o peso do corpo para fazer o zigue-zague.

  • Tocar a moto/é o toque:

    Gíria para identificar motociclistas que pilotam bem. Exemplo: "O pai é o toque".

  • Rodograu:

    Ruas ou vias desertas e com pouco patrulhamento policial cobiçadas por motociclistas para dar grau.

  • RL:

    Do inglês "Rear Lift", a manobra consiste em elevar a traseira da moto, inclinando o quadro sobre a roda frontal e parando por alguns segundos.

Entre a adrenalina, o chão e a lei

A presença na música e na vida dos jovens não esconde que a cultura do grau tem colocado a vida de motociclistas em risco. Empinar a moto é a segunda imprudência mais frequente entre eles, de acordo com o levantamento 'Imprudência - Cultura do Grau', realizado pela Younder, firma de inteligência de mercado.

Após uma análise quantitativa e qualitativa de relatos feitos em redes sociais, a empresa detectou os principais pontos de atenção reportados por motociclistas, motoristas e pedestres. Citado por 20%, a imprudência foi o segundo maior deles, logo atrás dos acidentes, com 20,8% das menções.

Empinar a moto foi a segunda imprudência mais citada, com 18%, só atrás da falta de capacete, com 30%."
Bruno Neves, head de inteligência de mercado da Younder

Entre 2009 e 2020, o Seguro DPVAT pagou mais de 3,8 milhões de indenizações às vítimas de acidentes de trânsito envolvendo motocicletas e ciclomotores, cita Neves.
As manobras também doem no bolso. Enquadrado no artigo do Código de Trânsito Brasileiro que proíbe fazer malabarismo, empinar a moto ou equilibrá-la sobre uma das rodas, o grau é considerado uma infração gravíssima. Gera perda de sete pontos na CNH e multa de R$ 293,47, além da suspensão do direito de dirigir.

Segundo dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), o volume de infrações referente a se equilibrar em apenas uma das rodas aumentou 53% de janeiro e abril de 2021 em relação ao mesmo período do ano anterior. De 2019 a 2021 (abril), 3.746 infrações do tipo foram contabilizadas no município de São Paulo, de acordo com dados do Observatório Mobilidade Segura.

A grana do grau

A cultura do grau movimenta também a economia da periferia. Algumas oficinas mecânicas atendem quase que exclusivamente motociclistas interessados em reparar danos provocados pela prática ou turbinar as motos para empinar melhor.

Mecânico de motos em Cidade Tiradentes, Kaique Gonçalves, 20, compartilha cicatrizes com as máquinas raladas e amassadas que atende. Nas pernas, ostenta um talho provocado após uma queda enquanto dava um grau e diversas marcas de queimaduras por encostar no escapamento quente. "Comecei como um dos primeiros clientes na mecânica. A curiosidade e gosto pelas motos me ajudaram a me tornar mecânico", conta.

Dono do negócio, há quatro anos no bairro, Weverton Sposito, 42, garante que, desde a inauguração, seu público principal são os grauzeiros. "De 100 clientes que atendo, pelo menos 70 dão grau. Como trabalham, costumam vir à noite para a manutenção", diz.

Entre os reparos mais comuns, estão as trocas de peças que desgastam mais rápido, como o diferencial, rodas, bucha da coroa, relação, retentor da bengala (que faz parte do conjunto de amortecedores) e caixa de direção. "Cerca de 50% do meu lucro é de moto de grau e trilha."

As modificações, por sua vez, são parte importante dos serviços prestados. Enquanto explica à reportagem a dinâmica da oficina, Sposito instala um bagageiro [a chamada "churrasqueira"] em uma moto. A intenção do condutor é raspar o acessório no chão no momento do grau.

Na espera, está outro jovem que deseja desinstalar um sistema que distribui a pressão da frenagem entre as rodas traseira e dianteira. Apesar de moderna, a tecnologia impede que o grau seja executado a contento, pois é preciso travar apenas a roda traseira, principalmente na hora de retornar ao chão.

Família do grau

Gonçalves admite que algumas das motos que passam pela oficina são as "só para rodar", veículos com documentação pendente ou em débito com financiamento. "Já tive motos assim. Hoje, a minha é regularizada. Tem dias que acordo às 5h para dar grau antes de entrar no trabalho. Para mim, é um esporte. Mas, se pegam, os PMs enchem o saco e dizem que vão apreender a moto", conta o mecânico.

O entregador Ronan espera que um dia empinar a moto não seja visto como algo marginal. "A 'familia do grau' é muito grande. Acredito que o grau vai ser um esporte legalizado, e o país vai vir com força. Aqui onde moro e em outras periferias, há muito talento", diz o jovem.

A família tem ganhado aliados importantes - e inesperados. Conservadora, a deputada federal Alessandra Silva (PSL-MG) passou a levantar a bandeira do grau. Já até usou um discurso em plenário da Câmara para defender que a prática não seja penalizada, mas considerada um esporte. O vídeo das declarações já foi visto 1,3 milhão de vezes na página no Instagram da deputada, que ganhou mais de 30 mil seguidores e passou a ver pessoas comentando #graunaoecrime em seus posts.

Me senti surpresa com a repercussão. Ainda não tinha um fator social e um público específico para lutar. Agora, eu encontrei. E isso aumenta minha responsabilidade"
Alessandra Silva, deputada federal (PSL-MG)

Ela já foi a eventos de grau, como o de Lagoa Santa (MG), e acompanha a repercussão de outros. Um desses em Ipatinga (MG) chegou a reunir 5 mil pessoas. "Vieram pilotos até do Tocantins."

Como o grau é uma infração, a deputada defende que ele seja feito em áreas privadas. Silva reconhece que a regulamentação do espaço urbano foge da alçada da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, que não podem intervir no assunto diretamente. "Cada município tem a sua característica demográfica e geográfica. O que estamos fazendo é uma campanha de incentivo e estímulo, para que prefeitos e secretários de esporte atendam aos pedidos desses pilotos de grau e façam a cessão de espaços de livre e espontânea vontade", explica.

Se o patrulhamento é o terror dos jovens, o apoio em alguns momentos também parte de dentro da polícia. Enquanto está trabalhando, o policial militar Alan Bucheli, 28, usa a farda cinza com a braçadeira da Rocam. Enquanto está de folga, compartilha com os grauzeiros o gosto por manobras de motos.

"Pratico wheeling, é diferente do 'grau de rua'. Temos um espaço fechado para a atividade, e as motos usadas são preparadas e não circulam no trânsito", explica.
De todo modo, Bucheli compreende a vontade dos jovens de empinar. Em atuações desse tipo, dá dicas aos motociclistas de como regularizarem a prática, como seguir as normas e não infringir as leis de trânsito.

Muita gente enxerga manobras de moto como algo marginalizado. Até dentro da minha profissão. Mas acredito que isso pode mudar com o tempo. Mas só se as leis forem seguidas."
Alan Bucheli, policial da Rocam e praticante de Wheeling

Topo