Escort: sonho de uma geração

Moderno e bonito, carro esbanjava esportividade e cativou uma legião de fãs

Vitor Matsubara e Rodrigo Mora Do UOL, em São Paulo (SP) Divulgação

Do "estrangeiro" para cá

Década perdida. É assim que muita gente se refere aos anos 80. Tudo bem que muita coisa estranha aconteceu naquela época, como a moda de roupas estranhas com combinações de cores duvidosas. Mas boas lembranças também não faltam, incluindo a criação de grandes bandas e até fatos históricos como a queda do Muro de Berlim.

Foi em meio a este período que o Escort chegou ao Brasil. Conhecido dos europeus desde 1967, ele já veio para cá na terceira geração. Primeiro carro global desenvolvido pela Ford, o modelo já estreou com status de ser o carro mais moderno que a Ford oferecido no Brasil desde o início de suas operações no país, em 24 de abril de 1919.

Embora a estreia por aqui tenha ocorrido somente em 1983, o Escort flertava com o Brasil desde seu lançamento - algo que só não ocorreu porque a empresa estudava a viabilidade econômica do projeto. As dúvidas acabaram quando a General Motors lançou o também global Monza em território nacional, deixando a rival sem escolha a não ser bancar o projeto do Escort no Brasil.

Assim aconteceu a ampliação e modernização da hoje finada planta de São Bernardo do Campo (SP), cuja capacidade produtiva saltou de 160 mil para 220 mil unidades anuais.

Divulgação
Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

Tudo igual ao europeu - ou quase

O Escort brasileiro seguia o padrão do modelo europeu até na nomenclatura das versões: L, GL, Ghia e XR3. O alinhamento só não foi total por alguns detalhes: o clima tropical do Brasil fez as janelas laterais traseiras serem basculantes ao invés de fixas e os motores originais CVH (com comando de válvulas no cabeçote) foram substituídos pelos da linha CHT (com comando no bloco), baseados nos Renault Cléon-Fonte do início dos anos 1960. Enquanto o 1.6 CVH rendia até 79 cv, nosso 1.6 CHT se estrangulava para chegar aos 65 cv.

Apenas na versão a álcool chegava-se aos 73 cv. Havia também o 1.3, a gasolina ou a álcool, de 57 cv e 63 cv, respectivamente. Ainda assim, o Escort era moderno. No quesito segurança, diferenciavam-se a carroceria deformável, a direção retrátil, os vidros laminados e os cintos de três pontos inerciais. O espaço interno era bem aproveitado, com inéditos porta-objetos, enquanto o porta-malas carregava bons 305 litros. E o Cx de 0,385 fazia dele o carro mais aerodinâmico da época.

"Eu tenho um"

O ano de 1983 ficou gravado na memória de quem aprecia esportivos nacionais. O Escort XR3 estreou no país com um visual idêntico ao modelo europeu. Ele seguia a receita de sucesso de um bom esportivo daquela época: rodas de liga leve, aerofólio, faróis auxiliares e vários pequenos detalhes. A Ford, porém, cometeu o pecado de equipar o XR3 com um anêmico motor 1.6 CHT de apenas 82,9 cv. Muito pouco para um carro daquele quilate.

Talvez para tentar vender uma imagem de carro verdadeiramente esportivo, a Ford lançou uma campanha publicitária em 1984 com um jovem talento do automobilismo nacional. Então na Fórmula Ford, Ayrton Senna estrelou diversas peças publicitárias de modelos da marca, inclusive o XR3. Ayrton, porém, teve uma interpretação pouco convincente no filme, que terminava com a célebre frase: "eu tenho um".

E de fato Senna tinha um Escort, como mostram fotos tiradas em 1984 em frente ao escritório da família, na Zona Norte de São Paulo (SP).

Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

Mais arredondado e potente

Enquanto o Brasil lutava para combater a inflação com o Plano Cruzado, a Ford fazia as primeiras mudanças no design do Escort em 1986. Mudaram faróis, lanternas, capô e para-choques (mais envolventes e feitos de plástico injetado, que melhoraram a já elogiável aerodinâmica em 8%). No interior, o painel ganhou novos grafismo e iluminação, um volante com melhor empunhadura e novos revestimentos.

Mecanicamente, os motores ganharam 2 cv. Mas o 1,3 litro foi aposentado, assim como a carroceria de cinco portas (que voltaria anos mais tarde, na versão Guarujá). O grande diferencial, no entanto, eram os amortecedores pressurizados, aliados da estabilidade do veículo. Eles equipavam a rara série limitada XR3 Formula.

Miau (Museu da Indústria Automotiva)

Ford + Volkswagen: você se lembra da Autolatina?

Firmada em 1987, a aliança entre Ford e Volkswagen teve efeito direto na linha Escort. As versões Ghia e XR3 ganharam os motores AP 1.8 de origem VW com comando no cabeçote. As potências também aumentaram: de 87 cv (Ghia a gasolina) a 99 cv (XR3 movido a álcool).

No caso do esportivo, a posição do motor transversal resultou em maior torque e o câmbio era o mesmo do Golf alemão. Já o Ghia tirava proveito de um câmbio com relações mais longas e um motor mais "manso" para melhorar as marcas de consumo.

A Autolatina se encerrou em janeiro de 1996. Um dos carros mais famosos foi o Volkswagen Apollo, praticamente um Ford Verona com logotipos VW. Havia pequenas diferenças estéticas, como para-choques na cor da carroceria (na versão GLS), lanternas fumês interligadas por uma régua na mesma tonalidade, aerofólio traseiro e painel com desenho exclusivo.

Após o fracasso do Apollo, a Autolatina lançou dois projetos exclusivos em poucos meses. Primeiro veio o Logus, apenas com carroceria de três volumes e duas portas, em março de 1993. Depois foi a vez do Pointer, um belo hatchback de cinco portas lançado apenas em agosto do ano seguinte. Apesar de belos (a ponto do então presidente da VW da Alemanha, Ferdinand Piëch, apontar o Pointer como o carro mais bonito feito pela empresa no mundo), nenhum deles fez muito sucesso e a dupla rapidamente saiu de linha devido ao fim da aliança.

Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

Escort chega ao auge e depois vira "argentino"

O último Escort nacional (que mais tarde adotaria cidadania argentina) é apresentado no XVII Salão do Automóvel, em novembro de 1992, como linha 1993, mais uma vez alinhado ao exemplar europeu (para eles, Mk V). Ao contrário do modelo 87 em relação 83 (uma atualização notável sobre a mesma base), este Escort era de uma nova geração.

Para começar, a distância entre-eixos passava de 2,4 metros para 2,5 m, ampliando o espaço para os viajantes do banco traseiro. O interior ganhava em ergonomia e acabamento. E a gama de motores ia do Ford 1.6, passava pelo 1.8 VW até o 2.0 também da marca alemã, a princípio exclusivo do XR3 e com 115 cv.

Foi o auge do Escort no Brasil, mas durou pouco. Em 1996, sua produção é transferida para Pacheco, na Argentina, para dar espaço ao Fiesta em São Bernardo do Campo. O carro mundial da Ford perdia protagonismo e ganhava uma infeliz grade dianteira ovalada.

Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

O adeus com motor Zetec

No 19º Salão do Automóvel, no fim de 1996, a Ford apresentou a sexta e última geração do Escort. Lançado nas carrocerias hatch, sedã e (pela primeira vez) perua, o Escort dessa fase argentina ficou conhecido como "Zetec", nome do motor 1.8 16V de 115 cv que o equipava. Maior (o comprimento chegava a 4,13 m, com 2,52 m de entre-eixos) e mais refinado, era uma clara evolução sobre o antecessor.

As versões GL e GLX foram mantidas, mas o XR3 fora substituído pelo decepcionante RS, que de esportivo só tinha o nome, o spoiler traseiro, as saias laterais e a carroceria de duas portas - o motor era o mesmo dos demais. Mesmo assim o novo Escort foi amealhando fãs, sendo um dos nacionais mais velozes de sua época.

A derradeira novidade do Escort foi a versão 1.6, batizada de Zetec Rocam, em agosto de 2000. Seu fim foi decretado em 2003, mas deu tempo de conviver alguns anos com seu sucessor, o Focus, revelado no Salão de Genebra de 1998.

Outras versões

Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

Hobby: o peladão

O Escort Hobby em setembro de 1993 quando os carros populares bombavam. A resposta da marca para encarar Fiat Uno Mille e Chevrolet Corsa Wind tinha o mesmo motor de 997 cm3 e 52 cv do Gol 1000. Desempenho e frenagem eram seus pontos fracos, e na missão de cortar custos, até o espelho retrovisor direito sumiu.

Divulgação

XR3 Fórmula

Limitada a apenas 750 unidades, esse modelo do Escort XR3 se diferenciava dos demais pela suspensão com amortecedores controláveis eletronicamente, podendo ficar mais rígidos ou macios. O modelo era marcado pelas cores vermelho Munique e azul Denver, além das faixas laterais com o nome da versão.

Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

Guarujá

Brasileiro demorou a gostar de carros com quatro portas. Talvez esse seja um dos fatores que explicam o fracasso do Escort Guarujá. Importado da vizinha Argentina, ele vinha com aerofólio traseiro e motor 1.8, mas não caiu no gosto do público brasileiro. Lançado no fim de 1991, ele deu adeus cerca de um ano depois.

Miau (Museu da Imprensa Automotiva)

Perua do Escort

As peruas ainda estavam na crista da onda nos anos 80 quando o Escort estreou no Brasil. Mesmo assim, a Ford nunca lançou uma nova perua, mesmo após a chegada do Verona - nada mais do que a versão sedã do Escort. Enquanto a Parati fazia sucesso diante de uma envelhecida Belina, a Ford só voltou a ter uma representante de peso na categoria em 1997. Motivo: o acordo com a Volkswagen proibia a empresa norte-americana de lançar uma rival da Parati.

Livre da parceria, a Ford logo lançou a Escort SW em 1997. Fabricada na Argentina, a perua tinha design moderno e um porta-malas com 385 litros. A perua era nitidamente superior a algumas rivais, como Fiat Palio Weekend e Chevrolet Corsa Wagon. Além de bonita, ela era confortável e bem acabada, mas o consumo era alto demais.

A perua ganhou a motorização Zetec 1.6 em 1999, mas nunca decolou a ponto de ameaçar a líder Parati. Saiu de cena em 2003 sem deixar sucessora.

Os amantes de Escort

Reprodução

"A cara dos anos 80"

Marcio Fujii:"Gostava do Escort XR3 pelo fato dele ter sido um grande rival do Volkswagen Gol GT. Mesmo assim, gosto por ser um carro diferente e raro de se ver nas ruas. Pode não ser moderno ou confortável, mas tinha uma construção muito interessante. É um carro muito moderno para sua época e que traz muitas coisas que não temos mais hoje em dia"

Acervo pessoal

"Xodó da família"

Manoel Cintra: "Nosso XR3 conversível está na família desde 1986 e só rodou 21 mil km desde então. Meu pai usava esse carro para passear com a gente aos finais de semana. Lembro até que fomos ver um jogo no Pacaembu e meu pai estacionou o carro com a capota aberta. Então começou a chover e ele saiu às pressas do estádio só para ir fechar a capota"

Rodrigo Moreira/Divulgação

"Comprei sem ter R$ 1"

Rodrigo Moreira: "Esse 1986 era de um amigo, que a esposa queria que ele vendesse porque não havia espaço na garagem deles, pois o carro da família ficava na rua. Não tinha R$ 1 quando o comprei. Parcelei em 12 vezes, no cheque. Hoje ele tem placa preta e é o carro que me inspirou para criar o grupo Descapotados Convervíveis, onde reunimos a galera"

Leia mais

Arte/UOL

Chevrolet Corsa

Lançado há 25 anos, hatch da Chevrolet marcou época no início do Plano Real nos anos 1990 e ainda deixa saudades dos seus fãs

Ler mais
Marcos Camargo/UOL

Ford Ka

O grande pecado do modelo aventureiro está mesmo no preço, salgado demais para um carro com motor de mil cilindradas

Ler mais
Murilo Góes/UOL

Renault Logan

Iconic 1.6 "altinho" ficou diferente de ver - e dirigir também. Ponto negativo? O estilo ficou um pouquinho desengonçado.

Ler mais
Topo