Arte/UOL

Noite de quinta-feira. Marginal Pinheiros, São Paulo. Dois carros emparelham e começam a acelerar. De repente, saem em disparada costurando o trânsito. O barulho é ensurdecedor. Tudo é filmado para angariar views.

O perigoso submundo dos rachas mudou com a chegada dos influenciadores digitais.

Antes promovidos em grandes eventos clandestinos, os pegas agora são combinados pela internet e acontecem a qualquer hora —inclusive durante o dia— e lugar, dificultando a fiscalização.

Participantes divulgam as aceleradas ilegais em suas páginas, atraem milhões de seguidores e ganham muito dinheiro.

Durante cinco meses, UOL Carros se infiltrou no universo das corridas ilegais em São Paulo para entender como e por que elas acontecem, com seus motoristas que cruzam avenidas e rodovias a até 250 km/h.

Segundo o Código Brasileiro de Trânsito, é crime participar de rachas, mas as autoridades não conseguem brecar a evolução desse movimento.

A pena para os rachadores vai de seis meses a três anos de prisão, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão da CNH. Em caso de lesão corporal grave e morte, pode chegar, respectivamente, a seis e dez anos de reclusão.

Qualquer lugar é lugar

Esqueça "Velozes e Furiosos" e outros filmes em que ruas fechadas e grandes aglomerações marcam o início dos pegas. Os pontos de encontro são os postos de combustível. As partidas são combinadas em grupos fechados no WhatsApp.

Com largada em movimento, os carros costuram perigosamente em meio a outros e passam dos 200 km/h em locais onde não há radares ou fiscalização.

Também há disputas de "tiros curtos", até o próximo sinal vermelho.

UOL Carros flagrou essa nova dinâmica dos rachas nas marginais Pinheiros e Tietê. Alguns seguiram pela rodovia Castelo Branco em direção a Alphaville. Nenhum foi freado pela polícia.

Como influencers mudaram a lógica dos rachas

O vencedor da acelerada ilegal não recebe troféu ou remuneração. O "racha 2.0" é financiado via monetização de vídeos em plataformas como YouTube e Instagram. Os participantes ainda promovem rifas para angariar dinheiro e atrair seguidores.

Em seus "projetos", como definem o processo que vai desde a preparação do carro até a disputa do racha, eles compram e customizam veículos. Tudo é registrado em vídeo.

O próprio carro pode ser sorteado por meio da venda de cotas nas redes sociais. Há casos de rifas que arrecadaram quase R$ 1 milhão —valor muito superior ao do veículo.

Esse tipo de sorteio, com venda de cotas, é considerado jogo de azar no Brasil, portanto, ilegal.

A legislação permite, no entanto, a realização de concursos atrelados à venda de produtos, como ocorre em shoppings.

Aproveitando-se dessa brecha, alguns youtubers vendem produtos de pequeno valor, como canecas e adesivos, distribuindo então os números para o sorteio dos carros.

Milhões de views: quem são os youtubers rachadores

Os 4 influencers abaixo foram procurados, mas nenhum aceitou conceder entrevista a UOL Carros

Backstage (Eduardo Razuk)

O youtuber tem vídeos com mais de 1 milhão de visualizações e já admitiu ter participado de racha na marginal Pinheiros. Já foi indiciado por incitação ao crime, direção perigosa e por furar o toque de recolher na pandemia, além de ter sido preso acusado de receptação de veículo vindo do Paraguai.

Estilo Dub (Klebim)

Costuma mostrar transformações de veículos para serem rifados. Atualmente em liberdade, foi preso em março de 2022 acusado de integrar uma associação criminosa interestadual voltada à prática de jogos de azar e lavagem de dinheiro por causa de rifas ilegais.

Gui 50 (Guillermo Hundadze)

Ex-ator mirim da Globo (participou da novela "Eterna Magia"), já apareceu a mais de 250 km/h e competindo em em vias urbanas e rodovias. Posta vídeos em que "encosta" na traseira de veículos mais lentos, pedindo passagem com a seta ligada e lampejando os faróis.

PetrolHead (Luan Galasso)

Já foi visto promovendo rachas em uma estrada perto de Campo Grande, que afirma ser fechada e chama de "México". Inspirado na franquia "Velozes e Furiosos", usa o país como gíria para designar o local das acelaradas em 'terra sem lei' e proteger o local dos encontros.

"Só para ver quem tem a r*** maior"

Rodrigo Barra é outro nome famoso no cenário das aceleradas ilegais. Conhecido como Alemão da Caravan, virou notícia em 2022 ao bater em alta velocidade na traseira de um carro em que viajavam duas gêmeas de três anos de idade, acompanhadas dos pais e da avó materna.

Ele disputava racha com Luan Galasso na rodovia dos Bandeirantes (SP). O acidente não deixou feridos e fez Alemão ganhar audiência e dinheiro no Instagram: ele postou um vídeo da batida na seção Amigos Próximos, restrita a seus assinantes.

(A gente faz racha) para ver quem tem a rola maior com um amigo. Não é para fazer bosta e aparecer.
Rodrigo Barra, o Alemão da Caravan, em entrevista a um podcast, explica o que move o rachador

Fiscalização não freia os rachas

A natureza "free style" dos novos rachas, que ocorrem de forma imprevisível e muitas vezes no meio do trânsito, é um dos principais entraves para a fiscalização.

A CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) é responsável por multar os motoristas, mas o combate à prática cabe à Polícia Militar.

Nos cinco meses em que frequentou encontros e flagrou corridas clandestinas em São Paulo, a reportagem observou presença policial apenas para testes do bafômetro. As abordagens aconteciam na região da avenida Europa, tradicional local de encontro de entusiastas de carros na zona oeste da cidade.

Questionada pela reportagem sobre a ineficiência da fiscalização, a PM afirmou que monitora diariamente a prática e incentiva a população a denunciar as atividades por meio de boletim de ocorrência.

"As equipes de policiamento preventivo realizam diligências em dias e horários específicos para mapear pontos de possível realização de rachas. Quando confirmado o seu acontecimento, a PM desenvolve fiscalização de trânsito para coibir e inibir a prática."

A reportagem também questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre a atuação das forças de segurança na repressão aos rachas. O órgão disse apenas que não tem dados sobre a quantidade de pessoas autuadas e veículos apreendidos.

As plataformas que hospedam os vídeos dos rachadores se esquivam da responsabilidade. A reportagem procurou o YouTube e o Instagram para entender se as publicações violam as diretrizes das comunidades. Mas não houve resposta clara sobre o assunto.

Em nota, o YouTube disse ser "uma plataforma de vídeo aberta e qualquer pessoa pode compartilhar conteúdo, que está sujeito a revisão de acordo com as nossas diretrizes da comunidade. Quando não há violação à política de uso do produto, a decisão final sobre a necessidade de remoção do conteúdo cabe a decisões do Poder Judiciário."

O Instagram respondeu apenas enviando links das diretrizes da comunidade e dos termos de uso, que vedam o apoio e a publicação de atitudes criminosas, sem menção à promoção e monetização de corridas ilegais.

Quem deve ser responsabilizado?

Rodolfo Rizzotto, fundador da entidade de vítimas Trânsito Amigo e do SOS Estradas, é um dos ativistas a favor da punição de quem divulga rachas e aceleradas ilegais na internet.

Rizzotto participou da construção do projeto de lei da ex-deputada Christiane Yared (PP-PR), vetado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que pretendia punir quem divulgasse imagens de infrações de trânsito.

Os principais responsáveis devem ser as plataformas, que lucram em cima das publicações. Além disso, o Ministério Público e o próprio STF estão fechando os olhos para isso. Estão sendo omissos e não cobram a retirada desses vídeos do ar.
Rodolfo Rizzotto

O ativista argumenta que muito se fala sobre a segurança na internet para áreas como política e fake news, mas se perde a oportunidade de deixar o trânsito mais seguro retirando publicações com crimes de trânsito do ar.

A dor da impunidade

Pelo menos 35 acidentes com mortos e/ou feridos provocados por rachas foram registrados no país nos últimos 12 meses, indicam reportagens publicadas na imprensa. Não há uma estatística oficial.

Uma dessas vítimas foi Lilian de Lima Pinheiro, 37 anos, que voltava para casa de moto quando foi atingida por dois motoristas que apostavam racha em Colombo, no Paraná. Sua filha Ariane, de 22 anos, conta que a mãe vivia um dos momentos mais felizes da vida por saber que seria avó.

"O atropelamento quebrou quase todos os ossos do corpo dela, morreu de politraumatismo", lamenta a filha.

Os 'rachadores' fugiram sem prestar socorro e estão soltos, respondendo processo em liberdade. Apesar da raiva, Ariane diz haver mais culpados pela morte da mãe.

Tenho uma sensação de impunidade quando vejo pessoas publicando vídeos de rachas na internet. Pode ser legal para eles, mas se acontece um acidente, está colocando a vida de uma mãe de família, do filho de alguém ou pai de alguém em risco.
Ariane Pinheiro

Topo