A experiência de muita gente com os guardadores de carros vem dos grandes eventos. E aí fica difícil não formar uma ideia negativa a respeito deles. Ir de carro a estádios e shows, por exemplo, é garantia de pagar preços exorbitantes para estacionar na rua. É nessa hora também que fica mais evidente o medo de que, caso não se pague a "gorjeta" exigida, algo bem desagradável pode acontecer ao carro ou ao motorista.
Aí vem a questão: não se trata de crime de extorsão? Caracterizar esse crime, no caso dos flanelinhas, é mais complicado do que parece. O artigo 158 do Código Penal define como extorsão: "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa".
De acordo com o descrito pelo artigo, para que fosse caracterizada a extorsão, teria que se comprovar a violência ou uma efetiva ameaça. É necessário, ainda, para a caracterização do crime, que o praticante da extorsão obtenha uma vantagem econômica indevida, ou seja, sem a respectiva contraprestação.
Vale lembrar que, longe dos grandes eventos, muitos guardadores não impõem aos motoristas a obrigação de pagar um valor, mas pedem uma "contribuição". Neste caso, qual a fronteira entre a gorjeta "espontânea", que outros profissionais também recebem, e aquela que é dada porque a pessoa foi ameaçada ou acredita que há uma ameaça velada? Como definir, aliás, "ameaça velada"?
Não à toa, o projeto do vereador Fernando Holiday, que pune com multa de R$ 1500 o flanelinha que coagir ou ameaçar motorista na cidade de São Paulo, tem pouco ou nenhum efeito prático. A aplicação da multa, assim como a caracterização do crime, dependem de uma prova difícil de ser obtida.
Questionada pela reportagem, a prefeitura de São Paulo, por meio de sua assessoria, disse que 320 guardadores foram autuados pela GCM (Guarda Civil Metropolitana) entre janeiro e dezembro de 2019. Não soube responder, porém, quantas dessas ocorrências resultaram em multas.
Para tornar tudo mais confuso, a Lei nº 6.242/1975 autorizava o trabalho dos guardadores, desde que eles estivessem devidamente registrados na Delegacia Regional do Trabalho. Ainda que a enorme maioria dos guardadores jamais tenha sido registrada, ao menos existia esta abertura para que os municípios encontrassem um meio de regularizá-los.
A Medida Provisória 905 de 2019, entretanto, ameaça jogar os guardadores num limbo jurídico ainda mais profundo. Atualmente em vigor, sua conversão em lei deve ser votada pelo Congresso, em definitivo, até 20 de abril. Caso isso aconteça, a Lei nº 6.242/1975 será revogada e os flanelinhas ficarão sem base jurídica para trabalhar.
Qualquer que seja o destino da lei, vale a reflexão se a vantagem econômica obtida pelo flanelinha seria, de fato, indevida (e, portanto, apta a caracterizar o crime de extorsão), na medida em que ele presta um serviço de vigilância (ainda que em caráter informal) que justifica o pagamento pelo motorista.
Complexo? Pois há ainda mais questões em jogo, como explicam três especialistas ouvidos pela reportagem.