Zumbis de ferro

Catadores ressuscitam e modificam carros velhos para ganhar a vida

Daniel Lisboa (texto) e Caio Guatelli (fotos) Colaboração para o UOL Caio Guatelli/UOL

Eles são trambolhos barulhentos. Por vezes, assustadores. Rodam por São Paulo com suas carrocerias cheias de pontas afiadas e manchas de ferrugem. Raramente dão seta. A fumaça que expelem não está exatamente de acordo com parâmetros ambientais. O peso que carregam parece inviável para um veículo daquele tamanho e naquelas condições.

Eles são os malvadões do trânsito. Ao menos, na aparência. Chamam a atenção por onde passam. São transformers adaptados à penúria social brasileira. Sua única arma em potencial é a capacidade de transmitir tétano.

Mas precisamos deles. Sem esses megazords de baixo orçamento, nosso já deficiente sistema de coleta de material reciclado seria ainda mais deficitário. São eles que saem dos mais variados cantos da cidade para catar a caixa de papelão da sua TV nova na lixeira. Fazem o rolê por você. Ou por quem deveria estar fazendo.

Os catadores que usam carros antigos e "cortados" são a minoria da minoria em São Paulo. Eles compram modelos de 30 anos atrás, ou mais, e arrancam a parte traseira de suas carrocerias. No lugar delas, adaptam uma espécie de gaiola. Assim, carregam centenas de toneladas de papelão e outros materiais.

São trabalhadores que competem com carroceiros, empresas privadas de coleta e catadores que usam veículos (bem) mais modernos. Reciclam carros que a grande maioria de nós veria como uma carcaça sob rodas. E rodam dezenas de quilômetros todos os dias a bordo desses zumbis do mundo automotivo.

A reportagem do UOL Carros passou meses em busca de um "cortado" que aceitasse contar sobre sua rotina. Não foi fácil. Eles sabem que rodam à margem, quando não fora, da legalidade do código de trânsito. Mas conseguimos conhecer pelo menos uma parte desse universo. Contaremos como foi nesta reportagem.

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Quem são e como vivem os 'cortados'

Em regra, os "cortados" trabalham por conta própria, ou seja, não fazem parte de associações ou cooperativas. Como conduzir veículos com cor ou característica adulterada é uma infração grave (5 pontos na CNH), é impossível rodar com um legalmente.

Os itens anteriores explicam por que não há estimativa oficial ou precisa sobre quantos "cortados" rodam em São Paulo. Esses veículos zumbis são também fantasmas. O Detran de São Paulo multou, de janeiro a junho deste ano, 2.702 motoristas que trafegavam com veículos de características adulteradas. Mas não é possível saber quantos desses eram catadores.

O carro favorito para esse tipo de trabalho é o Chevette, em especial os modelos do final dos anos 80 e início dos 90. O grande motivo é sua tração traseira, adequada para fazer o papel de "tratorzinho" capaz de carregar muito peso. Um modelo desse custa, em média, R$ 3 mil.

Para deixá-lo mais resistente, os catadores trocam algumas peças pelas de outros veículos. Por exemplo, substituem a suspensão do Chevette pela do Opala. O tempo útil do veículo costuma ser de cinco anos após a compra, a depender da manutenção.

A manutenção e o "corte" da carroceria costumam ser feitos em mecânicas da periferia da cidade e dentro de comunidades.

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Invisíveis. E "rebeldes"

A estimativa é de que existam 20 mil catadores em atividade na cidade. Os que trabalham com veículos é a imensa minoria"

Davi Amorim, coordenador de comunicação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis

Esses catadores até poderiam fazer parte de organizações, mas, nesse caso, os veículos costumam ser de propriedade coletiva. O resultado da coleta, e os custos, também são divididos entre todos"

Davi Amorim, sobre as razões de os donos de 'cortados' não integrarem cooperativas

A busca

A reportagem tentou encontrar um adepto do "cortado" por meio de associações e catadores com os quais já tinha contato. Sem sucesso. Seria preciso dar sorte e topar com um deles. E uma sorte maior ainda para conseguir abordá-los. Alguém que ganha a vida sacolejando entre arames e soldas no meio do trânsito de uma metrópole, driblando autoridades e a má vontade alheia, não tem tempo para discorrer sobre seus percalços existenciais com um estranho.

A não ser que esse estranho aproveite um raro momento de distração para pedir uma entrevista. O UOL Carros topou com um Chevette prata cortado parado na Avenida Pompeia. Seu dono, Luciano*, aguardava os filhos Arthur e Alan recolherem papelão. Ele aceitou dar uma entrevista e passou o telefone.

Depois de alguns percalços e alguma relutância, finalmente conseguimos marcar um encontro. A ideia era seguir o Chevette pelas ruas de São Paulo para fotografá-lo e contar um pouca da rotina de trabalho de Luciano e dos filhos.

Luciano tinha outro compromisso e não apareceu, mas a reportagem do UOL Carros seguiu Arthur e Alan pelas ruas da Pompéia por cerca de uma hora.

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O rolê

Arthur e Alan tinham acabado de descarregar, em um centro de reciclagem, a última leva de papelão coletado. Eles mostram um recibo de R$ 250 e reclamam do valor pago. Eles teriam das 15h até o fim do dia para catar outra montanha de material reciclável.

O UOL Carros acompanhou o Chevette por cerca de cinco quilômetros. Durante o percurso, notou que o trabalho dos dois garotos está mais próximo ao de um garimpo que ao de uma simples coleta. As abundantes lixeiras da cada vez mais verticalizada Pompeia estão longe de fornecer material farto para os catadores. Às vezes, eles encontram dois papelões em uma lixeira. Às vezes um. Muitas vezes, nenhum.

Parte da explicação é a concorrência. A reportagem cruzou com pelo menos outros cinco veículos de catadores. Outros Chevettes, claro, mas também uma Kombi já abarrotada e pelo menos um veículo de uma empresa privada de coleta de recicláveis.

Arthur e Alan pareciam não seguir um roteiro lógico. Passavam mais de uma vez exatamente nos mesmos quarteirões das mesmas ruas, mesmo após não terem encontrado nada ali pouco tempo antes.

A impressão era de que eles jamais encheriam a gaiola. Mas é improvável que tenham voltado para casa antes de fazê-lo.

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O dono

Luciano, pai de Arthur e Alan, mora em Pirituba, zona norte de São Paulo. Trabalhava com eventos. Não pôde mais fazê-lo devido à pandemia. Então comprou o Chevette modelo 1988 e passou a trabalhar como catador. O carro tem motor 1.6 e é movido a álcool.

"Foi a forma que encontrei para pagar as contas e trazer o sustento para a minha família", conta Luciano. "Escolhi o Chevette porque é um carro muito resistente, tem tração traseira e uma estrutura melhor para fazer a gaiola."

O catador pagou R$ 3 mil pelo carro e cortou ele mesmo a carroceria. De segunda a sexta-feira, roda cerca de 100 quilômetros por dia. Ele diz que já carregou até 900 quilos de material reciclável. Essa quantidade rende, em média, R$ 300 líquidos. Luciano gasta cerca de R$ 70 por dia com combustível.

"Já tivemos um carro apreendido pela polícia. Só que não temos como rodar com a documentação em dia. Precisaríamos ter uma caminhonete, que custa caro", diz Luciano. "Também tem muita gente que discrimina nosso trabalho. Olham para nós como se fôssemos vagabundos."

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O cortador

O corte e a manutenção dos carros são feitos por uma rede semiclandestina de mecânicos. São pequenas oficinas, em geral em regiões mais pobres.

O UOL Carros soube que um deles atendia em uma pequena comunidade ao lado do rio Tietê, na Lapa, e foi até lá. O mecânico, de forma compreensível, desconfiou da abordagem. Confirmou que cortava carros, mas disse que naquele momento não havia nenhum trabalho do tipo agendado.

Como não havia mais tempo para encontrar outro mecânico, a reportagem decidiu ir embora. Escolheu um dos dois caminhos possíveis para sair da comunidade. De repente, estava no meio de uma oficina de "cortados" a céu aberto.

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Água na cabine

Os catadores estavam reunidos em frente a um extenso muro pintado de preto. Entre pilhas e sacos de material reciclável, davam um trato em seus "cortados". Todos se conheciam. Eram quatro Chevettes, modelos 1989 a 1993, em níveis diferentes de degradação. Mas todos, segundo os donos, cumpriam com seus deveres.

O mecânico Marcio Neves dos Santos, 39 anos, fazia uma solda na gaiola do Chevette azul de Ulisses Silva, 28 anos. "Já vi um carro desses carregar duas toneladas de material", conta Marcio. Para ele, o segredo está na suspensão e nos pneus dos carros, que precisam ser novos.

"Uma suspensão nova chegar a durar entre dois anos e dois anos e meio. Já usamos até suspensão de Jipe", revela o mecânico. Ele também corta carrocerias e tapa buracos no assoalho. Diz que cobra, em média, R$ 700 pelo serviço.

Geilson*, 21 anos, está ali, entre outras coisas, para que Marcio conserte o teto do seu Chevette. Uma prática aparentemente comum entre os catadores é não apenas cortar o teto do carro, mas dobrá-lo e emendá-lo com sua parte dianteira, reforçando a fuselagem da cabine do motorista. Como uma cirurgia que retira um pedaço de pele de uma parte do corpo para corrigir a de outro. O resultado é uma camada toda embolada de fuselagem. Uma espécie de queloide metálica.

No caso de Geilson, parece que essa emenda não foi bem-feita e agora a água vaza para dentro da cabine. Ele diz à reportagem que isso acontece quando chove, mas é provável que haja mais um motivo. Os catadores costumam molhar a pilha de papelão no final do dia de trabalho. Assim, elas pesam mais e eles ganham mais (caso ninguém perceba o truque).

"Quando o carro não tem mais jeito, vendemos para o ferro velho", explica Marcio. "Eles arrancam as peças que estão boas e eu corto a lataria. Bem picadinho."

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