Tendência da gastronomia mundial, "caça" a alimentos tem versão paulistana com nutricionista
Claudia Silveira
Do UOL, em São Paulo
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Claudia Silveira/UOL
Neide Rigo mostra fruta conhecida como amendoim-de-árvore cujas sementes são comestíveis
Em uma metrópole como São Paulo, a oferta de comida é abundante nas prateleiras dos supermercados e nas feiras livres. Entretanto, para a nutricionista Neide Rigo, autora do blog "Come-se", ruas, praças e parques também entram na lista de endereços onde podemos abastecer a despensa ou a geladeira. Neide é uma verdadeira catadora de comida, no sentido literal da palavra. Ela tem mapeada na cabeça a localização de várias árvores frutíferas do bairro da Lapa, onde mora, na zona oeste de São Paulo, mas faz de toda a capital paulista uma grande horta a céu aberto.
Em um rápido passeio pelas praças e ruas da Lapa, Neide aponta pés de abacate, jaca, tamarindo, limão, pitanga, goiaba, manga e até jabuticaba, além de outras frutas menos populares, como uvaia e outra exótica, chamada de fruta-cofre ou maçã-de-elefante, graças ao formato parecido com o de uma maçã, mas cerca de quatro vezes maior.
Uma coisa que acho legal no hábito de olhar as frutas da cidade é que você acaba interagindo mais com o lugar onde vive, torna-se parte dele como as plantas que ali crescem
Neide Rigo, nutricionistaUm pé de jaca encravado em uma calçada, com as raízes quebrando o cimento, chama a atenção de Neide. Desta vez, ela não colhe nada porque, apesar de carregado, nenhuma jaca salta aos olhos. "Uma coisa que acho legal no hábito de olhar as frutas da cidade é que você acaba interagindo mais com o lugar onde vive, torna-se parte dele como as plantas que ali crescem. É um exercício de cidadania, uma apropriação dos espaços públicos que estão aí para serem usados. Uma cidade viva precisa de gente nas ruas, fora dos carros e das grades", filosofa.
Essa prática de catar a comida diretamente das árvores ou do chão - no caso de frutas caídas e plantas rasteiras - tem até nome em inglês, o "foraging", que consiste na procura ou "caça" pelo alimento, desde que não seja pegando o atalho do supermercado. Em português a palavra significa "forragear", um nome meio esquisito para essa prática comum entre os animais. Um dos principais nomes do "foraging" atualmente é o celebrado chef René Redzepi, do restaurante dinamarquês Noma, eleito o melhor do mundo pela revista britânica "Restaurant".
Redzepi se destaca por redescobrir ingredientes nórdicos que andavam esquecidos na culinária local. Nada passa despercebido pelo chef, desde galhos a folhas e plantas aquáticas, passando por animais da fauna local. Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, Redzepi reconhece que cozinha em uma parte do mundo onde muitas pessoas acreditam que esse hábito não possa existir, por conta do clima e dos ingredientes. "Talvez seja mesmo muito frio, talvez nós não tenhamos ingredientes o suficiente, mas, se você usar a sua intuição e ver as possibilidades, isso acontece", afirmou em entrevista à publicação britânica.
Em comum, tanto Neide Rigo quanto o chef dinamarquês têm o respeito pela comida local, pelo ciclo da natureza que divide as safras em estações e um olhar aguçado para enxergar frutos e partes comestíveis onde nós enxergamos apenas árvore ou nem nos damos conta da presença de uma planta frutífera na correria do dia a dia.
"As pessoas ainda estranham", responde ela quando perguntada sobre os comentários que ouve ao descobrirem que ela cata frutas em plena área urbana de São Paulo. Mesmo causando espanto, a nutricionista cria seguidores. É o caso da analista de sistemas Letícia Cinto, de 46 anos, que mora em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, e transformou as caminhadas com o marido em uma espécie de expedição pelo bairro.
"Como sou do interior, onde a maioria das casas tem quintal e árvores frutíferas, eu estou sempre atenta às plantas ao meu redor. Sempre acompanho o desenvolvimento das amoras e pitangas que são muito abundantes no meu bairro e os passarinhos adoram. Com a caminhada, os limites foram ampliados e já encontramos muitas frutas que não esperávamos, como carambolas, mamões e maracujás", detalha a analista de sistemas.
A última "colheita" de Letícia foram algumas jacas da árvore localizada em uma calçada no Alto de Pinheiros. Com autorização do dono do imóvel, ela levou para casa quatro jacas do tamanho de um abacaxi pequeno. Como ainda estava verde, a fruta foi usada como legume, por orientação da própria Neide no blog.
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Jaqueira carregada de frutos chamou a atenção da analista de sistemas Letícia Cinto
"Deu muito certo e fiz uma espécie de 'frango de jaca desfiado'. No mesmo dia, vieram uns amigos aqui em casa e experimentaram, comendo com pão. Todos gostaram e ninguém descobriu o que era. Só uma amiga parou de comer quando soube que era jaca!", relembra Letícia.
Cuidados na colheita
A analista de sistemas não se importa em colher frutas na área urbana - e consequentemente poluída - de São Paulo. Por precaução, ela dá preferência a ruas com pouco tráfego de veículos. A nutricionista Neide sugere ainda colher diretamente da árvore, evitando as frutas que já estão caídas. De resto, o processo é lavar bem, de preferência, deixando de molho no hipoclorito de sódio e retirando a casca antes de comer.
"Risco tem, mas a minha alimentação não é baseada na comida de rua. Eu não divulgo que 'tem que pegar'. Eu pego por minha conta e risco e sei que as verduras dos supermercados têm contaminações químicas de qualquer forma", observa Neide Rigo.
Quem quiser se aventurar nessa prática de "foraging", a nutricionista sugere o parque Ibirapuera e o Jardim Botânico, ambos na zona sul de São Paulo. Neide também alerta para não sair comendo qualquer folha ou fruta que surgir pela frente. O conhecimento de botânica que ela acumula vem de anos de pesquisa por conta própria em livros e publicações da área. O passeio por uma praça ou parque pode render um divertido programa em família, com cada um tentando descobrir que árvore ou fruta é aquela.
A analista de sistema Letícia Cinto já tem uma próxima colheita em mente. "Além de amoras e pitangas, já colhi goiabas na Vila Madalena e maracujá na praça do Pôr do Sol [zona oeste de São Paulo]. Aqui no bairro também tem bastante abacate, mas nunca cheguei a colher nenhum. Acho que vai ser minha próxima aventura."