Chefs profissionais e amadores deixam de abrir restaurantes para receber clientes em casa
Regiane Teixeira e Lucila Runnacles*
Do UOL, em São Paulo e Buenos Aires
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Montagem UOL/ Alessandro Guimarães/ Divulgação / Divulgação
Ambiente do Tangerine, que abre quinzenalmente na Lapa, em São Paulo (à esq.), e o blogueiro e fotógrafo Ricardo Toscani em seu "estúdio-restaurante" no bairro de Pinheiros
Durante anos a única coisa que o fotógrafo Ricardo Toscani cozinhou foram omeletes. Ao se casar e assumir as funções domésticas, sua vida e rotina mudaram. Ele começou a se interessar em aprender e inventar novas receitas.
Quando os trabalhos com fotos diminuíam, o hobby ganhava espaço e agora virou quase seu ganha-pão. Os assuntos da cozinha foram parar no blog Culinária Tosca e os jantares para amigos tornaram-se um evento aberto para desconhecidos. Hoje ele testa sua culinária informal com grupos de até dez pessoas que pagam para provar pratos como frango com cerveja ou bacalhau.
Ricardo é um dos chefs adeptos aos "jantares de portas fechadas". São profissionais das panelas, ou amantes da cozinha, que recebem desconhecidos na mesa da própria casa. A prática existe na Europa e em outros países da América Latina e chegou ao Brasil há poucos anos.
Restaurantes de portas fechadas
Veja Álbum de fotos
Por aqui, cada um começou de um jeito e por um motivo. A chef Manu Zappa ministra aulas de culinária e faz refeições sob encomenda há cinco anos. Sua inspiração surgiu após jantar na casa de um casal de cozinheiros no México. "É uma oportunidade para preparar receitas com ingredientes especiais para poucas pessoas. Uso coisas que compro em viagens, como temperos da França ou da Índia", conta.
Nunca pensei em ter um estabelecimento tradicional, assim posso improvisar e fazer um cardápio novo todo dia
Manu Zappa, chefEm dezembro de 2011, ela se mudou para Itacaré, na Bahia, e fez da sua casa um restaurante que funciona apenas com reservas. "Nunca pensei em ter um estabelecimento tradicional, assim posso improvisar e fazer um cardápio novo todo dia", diz ela, que, quando solicitada, ainda cozinha na casa dos clientes em São Paulo ou no Rio de Janeiro.
A experiência no exterior também motivou os banqueteiros Demian Figueiredo e Pila Zucca, do bufê Les Amis, a entrar na brincadeira. Num casarão dos anos 50 em São Paulo, eles recebem até 14 pessoas uma vez por mês para jantares temáticos. Por R$ 150, cada convidado tem direito a entrada, prato principal, sobremesa, um drinque e água mineral. As reservas são feitas por e-mail com o pedido para que o cliente se apresente e diga o que gosta de comer.
Já os chefs brasileiros Celia Miranda Mattos e Gustavo Dalla Colletta Mattos fizeram caminho contrário. Eles decidiram, em 2008, abrir seu restaurante "sem cara de restaurante" em Paris, onde moram.
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Os chefs brasileiros Celia e Gustavo no restaurante que fica no apartamento do casal, em Paris
O casal conta que, após investir em um projeto de cozinha bem planejado para o apartamento que compraram, surgiu a ideia de transformar o espaço em ambiente de trabalho. "Pensamos: 'Gastamos tanto nesta cozinha que poderíamos pensar em ganhar dinheiro com ela'", contam. Diariamente, eles recebem de duas a dez pessoas, com reserva, no chamado Chez Nous Chez Vous.
Hobby lucrativo
Assim como o fotógrafo Ricardo, Priscilla Moretto vem de uma profissão que não tem ligação direta com a cozinha. No entanto, desde 2006 a produtora de televisão pesquisa a culinária de vários países e prepara refeições para pequenos grupos. "Nasci numa família em que os rituais gastronômicos são levados ao pé da letra", conta.
Em 2011, Priscila inaugurou no bairro da Lapa, em São Paulo, o Tangerine Cozinha Original. O espaço abre a cada quinze dias, sempre aos fins de semana, e conta com apenas quatro mesas para receber os clientes, que podem se informar sobre o funcionamento do local via Facebook.
No salão com paredes revestidas de azulejos coloridos, o cardápio preparado pela produtora é enxuto e varia, conectando-se à ideia de renovação seguida por chefs do mesmo estilo. Entre os petiscos que Priscilla já preparou estão o hambúrguer de pão de queijo, cheddar e cebola roxa, servido numa caixinha metálica de marmita, a tapioca de pernil com queijo brie e chutney de manga, e a coxinha de mandioca com leite de coco recheada de frango thai.
Laços gastronômicos
Em São Paulo, Mara Azenha foi dona de doceria, lanchonete e bar e, ao terminar sua última sociedade, decidiu trabalhar sozinha. A grande lista de clientes que ela tinha em seus estabelecimentos anteriores a acompanharam nos almoços e jantares que passaram a ser realizados na sua casa.
Todas as semanas ela envia um e-mail para os amigos e organiza eventos para até vinte pessoas aos sábados ou domingos. "No Brasil, as pessoas não costumam se programar com muita antecedência, tem muita gente que me liga em cima da hora", conta.
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A baiana Helia Bispo na mesa onde recebe os clientes em sua casa, na Bela Vista, em SP: "Gosto de sentar, conversar e olhar na cada de todo mundo. Nossa amizade começa daí"
A experiência em casas comerciais faz com que ela saiba se adaptar. Mesmo com o tempo curto, quando há demanda, ela prepara um cardápio que inclui entrada, prato principal e sobremesa por um preço que varia entre R$ 75 e R$ 85. O menu pode ter de pratos da culinária francesa a uma massa italiana tradicional.
Já a baiana Helia Bispo, a Bá, começou seu "restaurante fechado" após perder a barraca de acarajé que mantinha há 13 anos em uma avenida de São Paulo. "Tudo foi apreendido pela prefeitura e os amigos que eu fiz lá começaram a vir comer na minha casa", conta. "Cada pessoa trazia outra e é assim até hoje."
Bá prepara almoços e jantares mediante reservas de quarta a domingo. "Nem sabia que outras pessoas também faziam isso", diz. Quem vai até sua casa no bairro da Bela Vista, em São Paulo, paga R$ 80 e pode se servir à vontade num bufê de comida baiana. Entre os pratos estão polvo, vatapá, caruru, bobó de camarão. As reservas são para até 20 pessoas no almoço e 15 no jantar. "Gosto de sentar, conversar e olhar na cara de todo mundo. Nossa amizade começa daí", garante ela.
Troca de receitas
A mesma tendência de restaurantes dentro de casa chegou a Buenos Aires há cerca de sete anos e hoje existem por volta de 40 estabelecimentos nesse estilo na capital portenha.
O conceito desses lugares é parecido, mas cada um se destaca por uma proposta diferente. Alguns estabelecimentos têm uma surpreendente carta de vinhos, outros contam com anfitriões simpáticos, que chegam até mesmo a passar as receitas dos pratos, enquanto outros misturam culinária, música e arte.
Quem escolhe uma experiência como esta é porque busca algo mais íntimo e um atendimento personalizado. Muitas vezes chego até mesmo a sentar nas mesas, e quem entra como cliente pode sair como amigo
Alejandro Langer, chef argentinoO projeto Jueves a la Mesa recebe 14 comensais somente às quintas-feiras. Os convidados se deliciam com pratos exclusivamente vegetarianos. "Fazemos comidas saudáveis e apetitosas, com os mesmos ingredientes de sempre. Percebi que os argentinos possuem uma culinária bem básica e muitas vezes eles não aproveitam as frutas e os vegetais que têm aqui", explica a norte-americana Megan Lewis, que há três anos toca o negócio ao lado da sócia, Sofia Madriz.
No bairro de Vila Crespo fica o Cucina Discreta, do chef argentino Alejandro Langer. Ele, que também é fotógrafo, aproveita as paredes da casa para expor seus trabalhos. "A ideia é fazer algo diferente do convencional. Durante o jantar, seleciono música independente, por exemplo. Quem vem aqui logo sente esse clima mais intimista e personalizado", revela. O menu servido ali é argentino. Os carros-chefe são o medalhão de filé mignon, e de sobremesa, pavlova, um creme gelado com frutas vermelhas e suspiro. O jantar sai por 130 pesos (em torno de R$ 54), sem bebida, e inclui uma entrada, prato principal e sobremesa.
"Quem escolhe uma experiência como esta é porque busca algo mais íntimo e um atendimento personalizado. Muitas vezes chego até mesmo a sentar nas mesas, e quem entra como cliente pode sair como amigo", conta Alejandro. *Com colaboração de Carol Ramos e Adriana Terra.