Fizeram História

Abdias Nascimento: uma vida dedicada à defesa do povo negro no Brasil

Por Paula Rodrigues

Há 76 anos, em 13 de outubro, nascia no Rio de Janeiro um dos mais ambiciosos projetos do Movimento Negro à época: o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias Nascimento, que durante os 97 anos de vida foi ator, diretor, artista plástico, poeta, dramaturgo, professor, economista deputado federal, senador, militar, militante e também um "negro desaforado", como o próprio chegou a se descrever. Não à toa Abdias se considerava e foi visto por muitos assim.
Elisa L. Nascimento/Divulgação
Desde muito novo, cultivou a certeza que o acompanharia por toda sua trajetória no campo cultural e político até o último dia de vida: a de que o povo negro merecia muito mais do que recebia. Por isso, travou diversas batalhas, desagradou boa parte da sociedade brasileira, foi preso mais de uma vez, além de exilado político. Também encabeçou uma imensa quantidade de propostas e projetos de promoção à igualdade racial, o que o faz ser conhecido até hoje como um dos principais nomes da intelectualidade brasileira.
Tuca Vieira / Folhapress
Sua primeira experiência com questões raicias veio quando ainda era criança. Nascido na cidade de Franca, interior de São Paulo, em 14 de março de 1914, a convivência com ex-escravizados recém libertos, sendo a própria avó de Abdias uma deles, fez com que observasse o tipo de vida que negros levavam. Sem qualquer ajuda ou reparação, muitos não tinham trabalho, estudo, casa ou o até mesmo o que comer.

O Exército e a Ação Integralista Brasileira

Com apenas 15 anos, Abdias saiu da casa dos pais e foi morar sozinho em São Paulo, onde ingressou no exército mesmo com a pouca idade. A forte ligação com ideias nacionalistas o levou a entrar na Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado, movimento de extrema-direita com viés fascista -- ao mesmo tempo em que também ingressava na militância racial na Frente Negra Brasileira (FNB), movimento negro que em 1936 tornou-se partido político. Do exército, seria expulso algumas vezes. A primeira aconteceu quando foi obrigado a entrar pela porta dos fundos de um bar, iniciando uma briga que resultou na chegada da polícia de São Paulo. Também a primeira vez que Abdias foi preso.
Ao sair da prisão após 30 dias, o racismo vindo de membros da AIB logo seria o motivo para o total desligamento de Abdias com o grupo. "Em relação ao integralismo, posso afirmar que ele não oferece nenhuma oportunidade para o negro (...). A atmosfera de ordem doutrinária do integralismo são contrárias aos ímpetos das massas exploradas e sofridas", diria Abdias do Nascimento no livro "Abdias Nascimento: o griot e as muralhas", de sua autoria com Ele Semog.
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Após um curto período, porém, decidiu se mudar para o Rio de Janeiro e voltar a entrar no Exército, na tentativa de se tornar oficial da cavalaria. Mesmo assim, o ativismo político nunca o abandonaria. Chegou a ser flagrado distribuindo panfletos contra o imperialismo norte-americano. O resultado? Seis meses na cadeia.
Tuca Vieira / Folhapress

O Carandiru e o interesse pelo teatro

Ao sair da prisão pela segunda vez, passou um breve período em Campinas, mas logo retornou ao Rio de Janeiro. Lá, em 1939, juntou-se aos poetas Efraín Tomás Bó, Juan Raúl Young e Godofredo Tito Iommi e fundou o Santa Hermandad de la Orquídea, grupo que viajava o mundo buscando e espalhando conhecimentos ligados à poesia. Em uma dessas andanças, viveu o momento que mudaria de novo os rumos de sua vida e que o levaria a criar o Teatro Experimental do Negro (TEN).
Acervo UH/Folhapress
Quando estava em Lima, no Peru, foi assistir à peça teatral "O Imperador Jones", de Eugene O'Neill, que narra a história de um personagem negro. Mas o que Abdias encontrou no palco foi um ator branco fazendo "blackface" -- quando pinta-se o rosto de preto para interpretar uma pessoa negra. O fato revoltou Abdias e o levou a perceber que nunca tinha visto atores negro atuando em um teatro.
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Quando retornou ao Brasil, porém, foi preso pela terceira vez por causa de um episódio antigo quando bateu em um delegado. Mandado diretamente para o Carandiru, ficou lá por um ano. E ainda impactado com a falta de atores negros em peças teatrais, foi o responsável por criar o "Teatro do Sentenciado", grupo que montou com os presos da época. "Nós construímos o palco, fazíamos o vestuário, os presos escreviam as peças e eu dirigia," contou Abdias Nascimento em entrevista a Sandra Almada para o livro "Abdias Nascimento".

O Teatro Experimental do Negro (TEN)

A revolta pela falta de profissionais negros em companhias teatrais continuou o motivando após ser solto. Voltou ao Rio de Janeiro e, em 13 de outubro de 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), responsável por fortalecer a participação de atores negros em peças teatrais.
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O grupo tinha como sua principal bandeira a negritude. Segundo o próprio Abdias, o objetivo do TEN era resgatar traços da cultura negra apagados pelo colonialismo europeu e valorizar o negro por meio da educação, cultura e arte.
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Curiosamente, na hora de escolher qual seria a primeira peça interpretada por aquele recém-criado grupo, em 1945, Abdias teve a certeza: faria uma encenação de "O Imperador Jones", peça que viu em Lima. Mas dessa vez do jeito certo: com um ator negro interpretando um personagem descrito como negro. O local escolhido foi o Teatro Municipal.
Acervo UH/Folhapress
Apesar da imprensa ter considerado o feito uma afronta à tão pregada democracia racial, o TEN recebeu apoio de grandes nomes da época. Além de promover a inserção do negro no mundo do teatro, seja atuando ou escrevendo peças, Abdias despertou em intelectuais brancos o interesse em escrever obras de arte sobre pessoas negras de forma mais completa, sem ser pejorativo. O escritor Nelson Rodrigues foi um deles, à época, inclusive, chegou a defender o TEN e posteriormente definiria Abdias da seguinte forma:
Folhapress

O que eu admiro em Abdias Nascimento é a sua irredutível consciência racial. Por outras palavras: trata-se de um negro que se apresenta como tal, que não se envergonha de sê-lo e que esfrega a cor na cara de todo mundo

Nelson Rodrigues,
escritor, em 1957, sobre Abdias Nascimento
Ainda em 1945, Abdias fundou dentro do TEN o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, aberto para todas as raças, que tinha como intuito a luta a favor da soltura dos presos políticos da ditadura Vargas. Mas logo os brancos que faziam parte da organização o expulsaram por ser o que chamaram de "negro racista", por continuar defendendo fielmente a causa do negro no Brasil.
Acervo UH/Folhapress

A vida nos Estados Unidos

Abdias passou quatro anos no Brasil vivendo a ditadura que o golpe militar de 1964 instaurou. Mesmo assim, manteve-se firme nas denúncias e na defesa do povo negro, o que para a época significava ir contra o governo regente. Por isso, em 1968 com a implantação do Ato Institucional nº 5, período marcado pela violenta repressão a manifestações contrárias ao regime, Abdias foi para o exílio nos Estados Unidos.
Arquivo Nacional/Correio da Manhã
Lá esteve em contato com grandes nomes da militância negra, inclusive com lideranças dos Panteras Negras. Chegou a descrever a ida para os EUA como "sorte grande". Curiosamente, porém, nunca quis aprender a falar inglês, recusava-se a ser "colonizado pela segunda vez", como diria. Lá, passou a pintar e se envolver com artes plásticas e ficou mais próximo às ideias pan-africanistas, também conheceu uma jovem branca chamada Elizabeth Larkin, com quem viveu até o último dia de vida.
Roberto Price/Folhapress
Sobre essa época exilado, Abdias chegou a escrever um depoimento no livro "Memórias do Exílio", que reúne declarações em primeira pessoa de brasileiros exilados. Nele, diz que não foi a ida para os Estados Unidos que iniciou o exílio para ele -- por ser negro, Abdias sempre se considerou exilado no próprio país.
Tuca Vieira / Folhapress

Hoje mais do que nunca, compreendo que nasci exilado, de pais que também nasceram no exílio, descendentes de gente africana trazida à força para as Américas. Não sou um opositor simplesmente do governo militar instalado em 1964, pois todos os governos que o Brasil já teve foram contra o negro (...). Sempre fui exilado em meu próprio país, não tenho uma terra natal. Ou melhor, tenho: África. A sociedade brasileira recusou minhas raízes africanas, quis cortá-las, arrancá-las à força, fazer de um desenraizado.

Abdias Nascimento,
em "Memórias do Exílio"

Volta ao Brasil e vida política

O exílio que duraria apenas um mês nos Estados Unidos se estendeu por 13 anos e incluiu uma ida para a Nigéria, onde se tornou professor da Universidade de Ifé. Quando voltou ao Brasil, em 1978, começou a flertar com a vida política, principalmente ao se aproximar de Leonel Brizola, fundador do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Quando Brizola se tornou governador do Rio de Janeiro, Abdias foi chamado para assumir o cargo de Secretário de Defesa e Promoção da Igualdade Racial, em 1991.
Sérgio Lima/Folhapress
O PDT lançou Abdias como deputado federal em 1982. A vida de militante do movimento negro se institucionaria, e a defesa de direitos para o povo preto seria a principal bandeira do mandato. Um ano antes, já tinha criado o primeiro centro de pesquisa voltado para assuntos da comunidade afro-brasileira, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).
A jornalista Sandra Almada descreve em seu livro a relação da maioria dos outros políticos com Abdias como "ostensivamente intolerante, até mesmo agressiva", sendo o único deputado negro que denunciava abertamente as situações racistas e cobrava melhorias para o povo preto na Câmara e posteriormente no Senado, quando foi eleito senador em 1991 e depois ocupando o mesmo cargo em 1996 até 1999.
Tuca Vieira / Folhapress

Quando cheguei à Câmara não me deixavam falar, queriam cortar minha palavra achando que estava falando absurdos. Depois de anos passados fazendo minha pregação, já podia falar mais, já recebia, por exemplo, o aval dos senadores aos meus projetos de lei. A sociedade vem mudando, à medida que a gente bate, bate, bate na mesma tecla. É verdade que é assim aos pouquinhos, mas é um processo irreversível.

Abdias Nascimento
Abdias promoveu inúmeros encontros e conferências para discutir a questão racial no Brasil, como o 1º Congresso Negro Brasileiro, de 1950. O primeiro projeto de lei que pedia ações afirmativas para a população negra nasceu de suas mãos. Foi também o responsável pela emenda constitucional que garante o direito a terra para comunidades quilombolas; encabeçou ações que viriam a pressionar o tombamento da Serra da Barriga, espaço que abrigou o Quilombo dos Palmares; propôs projetos de ações compensatórias para negros; chegou inclusive a receber uma indicação ao Nobel da Paz, em 2004. Morreu com 97 anos, vítima de uma pneumonia.

Não vim para trazer a calmaria das almas mortas, das inteligências petrificadas, dos que não querem fazer onda à flor das águas. Eu estava mesmo disposto a assumir o papel de 'boi de piranha'. Todo mundo foge desse papel, mas eu não me importo. Se eu for sacrificado em nome do meu povo, estou recompensado de tudo. Toda minha vida é isso mesmo, é o que indica toda minha biografia.

Abdias Nascimento,
em entrevista a Sandra Almada para o livro "Abdias Nascimento"
Fernando Rabelo/Folhapress
Publicado em 17 de outubro de 2020.

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